27 Maio - Indomável


Título original: True Grit

De: Joel Coen, Ethan Coen

Com: Jeff Bridges, Matt Damon, Josh Brolin, Hailee Steinfeld
Género: Western
Classificação: M/12
Origem: EUA
Ano: 2010
Cores, 110 min
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Mattie Ross (Hailee Steinfeld) tem 14 anos e uma personalidade invejável. Depois do assassinato do seu pai pelo traidor Tom Chaney (Josh Brolin), seu empregado, ela jura vingar-se. Para isso contrata Rooster Cogburn (Jeff Bridges), um marshal alcoólico, famoso pelos seus métodos impiedosos mas muito eficazes. Mas Tom tem também no seu encalço LaBoeuf (Matt Damon), um ranger do Texas verborreico e arrogante, mas de grande determinação, que acaba por se juntar a Mattie e Rooster na caça ao homem. Mas a relação entre os três será difícil e, também por isso, muitas cabeças irão rolar... Realizado pelos irmãos Coen, uma readaptação do romance "True Grit", escrito por Charles Portis com o Oeste americano como pano de fundo. Henry Hathaway adaptou, em 1969, o livro ao cinema com John Wayne, Robert Duvall e Dennis Hopper nos principais papéis valendo o Óscar a Wayne. Nomeado para dez Óscares, entre os quais melhores filme, realizador, actor (Bridges), actriz secundária (Steinfeld) e argumento adaptado (Ethan e Joel Coen)

Mário Jorge Torres, in PÚBLICO
Uma brilhante demonstração de virtuosismo, fria e letal como uma faca no tecido formal de um cinema autoreflexivo

O universo fílmico dos irmãos Joel e Ethan Coen passa inúmeras vezes por uma reescrita pessoal da memória do cinema clássico, por uma reelaboração do que resta do conceito de género, deixando quase sempre pistas de reconhecimento, numa estratégia pós-modernista de pastiche e (ou) de paródia. Foi assim com o opus 1, "Sangue por Sangue" (1984), a transformar vestígios de Hitchcock num objecto autoreflexivo, com "Histórias de Gangsters" (1990), fornecendo bastos motivos de análise abstracta da violência no filme de gangsters, depois da aventura atmosférica do "film noir", ou com "Fargo" (1996), parodiando o "crime movie" numa zona em que "thriller" e comédia se cruzam em perigosa consonância. Mesmo objectos mais "inqualificáveis" revelavam estranhas rimas com o passado filtrado por uma fina rede de referências: "Barton Fink" (1991) construía uma homenagem surrealizante ao filme de terror, numa dimensão de paranóia; "O Grande Salto" (1994) evocava em filigrana um Capra fora de contexto; "Irmão, Onde Estás" (2000) reaproveitava o título do filme ficcional do início de "Sullivan''s Travels" (Preston Sturges, 1941) para visitar o "filme de prisão", em jeito de Odisseia moderna; para já não mencionar a paródia das paródias, "Arizona Júnior" (1987), algures entre o burlesco e os resquícios do "thriller". Em toda a sua obra evidencia-se, pois, o gosto pela textualidade de segunda instância, exigindo do espectador chaves sucessivas de interpretação e apostando na elaboração sistemática e sofisticada de sinais, num formalismo pensado ao milímetro.
Agora chega a vez de os irmãos abordarem o "western", sempre do modo como reflectem sobre a verdade dos géneros, com a imensa distância que se impõe por diversas razões: primeiro, trata-se de um género morto e enterrado, com sucessivas certidões de óbito: depois de "Imperdoável" de Eastwood já não há hipóteses de heroicidade ou de vertente épica, ou seja, resta sobretudo o grafismo e as situações extremas, em que os tropos se acumulam numa espécie de vertigem sem sentido. Em segundo lugar, "Indomável" ("True Grit" no original, tal como na novela de partida, de Charles Portis, baseada num episódio verídico, exercício complexo de "non fiction" romanceada) assume uma outra mediação: é um "remake" explícito de "Velha Raposa" (1969), já de si um "western" moribundo, criado por uma das "velhas raposas" de Hollywood, Henry Hathaway, para o carisma final de uma das estrelas incontornáveis do género, John Wayne, em constante caricatura dos seus tiques, apesar de ter sido levado a sério, o que prova o Óscar de melhor actor que coroou a sua rábula, bem como a existência de uma famigerada sequela "Rooster Cogburn/O Sheriff" (Stuart Millar, 1975), juntando Wayne a outras das glórias do passado, também ela em registo caricatural, Katharine Hepburn.
Estamos, pois, perante um objecto esquisito que regressa a um género extinto por via de um labirinto de referências intra-cinematográficas: se "Velha Raposa" já se perfilava como uma paródia de personagens e de actores, "Indomável" é uma paródia de uma paródia, um divertimento quase autosuficiente, destinado a congelar características discerníveis de um discurso ultrapassado, escrito (apetecia dizer "sobre-escrito") com a plena consciência disso. Se algo avulta neste exercício de estilo é, precisamente, a perda de qualquer inocência, apesar do imenso cuidado na escolha da jovem actriz (uma belicosa Hailee Steinfeld, vinda da televisão), para encarnar a adolescente que procura um vingador para a morte do pai. Assim, o "western" de vingança desdobra-se em previsíveis peripécias de perseguições e tiroteios, sempre desenhados com o distanciamento do pastiche e ancorados na memória de John Wayne, o que não constitui defeito (mas feitio), uma vez que os Coen nunca pretendem construir emoção, aspirando antes a um jogo de gato e rato com o espectador prevenido.

Contudo, onde a aposta atingia o paroxismo era na escolha do actor que substituiria Wayne, de tal modo se exigia uma "persona" forte e diversa: Jeff Bridges ganha a batalha, porque resiste à emulação e faz de si próprio, com a dignidade que a sua longa carreira lhe confere e o mais espantoso passa pela secura que consegue transmitir ao seu anti-herói. Mais: se ainda houvesse "western" este seria um bom exemplo de encadeamento narrativo, de formulação de propostas formais arrojadas e inovadoras. Os Coen filmam impecavelmente com a noção irrepreensível do espaço, dos longos planos de grua, da articulação dos conjuntos: veja-se a magnífica sequência em que Matt Damon (uma importantíssima mais-valia) alveja de longe os bandidos, ou a preciosa encenação do ataque à cabana com a jovem no telhado e Bridges escondido cá fora, reformulando, de forma precisa, a modernização necessária do campo/contracampo.
Por tudo isto, "Indomável" constitui um prazer para os olhos e para a mente, fazendo da racionalidade o seu código, embora longe do soco no estômago que tornava "Este País Não É para Velhos" porventura a obra-prima dos Coen. Pelo contrário, este post-"western" assume-se como o que é, na verdade: uma brilhante demonstração de virtuosismo, fria e letal como uma faca no tecido formal de um cinema questionador e autoreflexivo.

20 Maio - Somewhere - Algures


Título original: Somewhere

De: Sofia Coppola

Com: Stephen Dorff, Elle Fanning
Género: Drama, Comédia
Classificação: M/12
Origem: ITA/FRA/EUA/JAP
Ano: 2010
Cores, 95 min
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Johnny Marco (Stephen Dorff) é uma típica estrela de cinema de Hollywood: vive no Chateau Marmont, um luxuoso hotel em Los Angeles, tem um carro topo de gama, mulheres belíssimas à sua volta e uma vida cheia de glamour. Até a ex-mulher deixar ao seu cuidado, e por tempo indeterminado, Cleo, a sua filha de 11 anos (Elle Fanning, irmã mais nova de Dakota Fanning). Este reencontro com a menina que, apesar da idade, demonstra uma grande maturidade, vai ser um momento de viragem para Johnny que sente necessidade de repensar a forma como tem vivido a sua vida. Com argumento e realização de Sofia Coppola ("Lost in Translation"), "Somewhere" foi o filme vencedor da 67ª edição da Mostra Internacional de Arte Cinematográfica de Veneza.

Jorge Mourinha, in PÚBLICO
"Algures" não traz nada de novo ao cinema de Sofia Coppola, mas os seus segredos não se revelam imediatamente
Ponto prévio: não se venha a "Algures" à espera de "Lost in Translation nº 2". As expectativas são inevitáveis - queremos sempre regressar ao lugar onde fomos felizes... - mas é tarefa vã: por natureza, um momento de graça é irrepetível.
O engenho de Sofia Coppola em "Algures" é precisamente esse: dramatizar a repetição. Mostrar o que acontece quando esses momentos de felicidade se tornam num parque de diversões permanente, e se perde a noção do tempo, da realidade. "Algures" é a história de alguém que chegou onde queria e percebeu que, afinal, não era aquilo que queria.
Sim, é (outra vez) um filme sobre o nada, sobre o vazio de uma existência perfeita. Sim, é Sofia outra vez a fazer um filme de menina rica sobre meninos ricos que não sabem o que querem da vida. Podia ser a versão actualizada da "História de Nova Iorque" que o pai Francis filmou há vinte anos, podia ser uma versão moderna da "Marie Antoinette", menina rica perdida fora de pé. O Johnny Marco que Stephen Dorff cria aqui é isso: um rapaz fora de pé, que preenche o vazio dos seus dias de vedeta hollywoodiana com noitadas, bebedeiras, sexo fácil, tabaco. Até que a filha lhe cai nos braços e Johnny começa a perceber que há uma vida para lá da sua bolha.
Não sabemos bem se "Algures" é "adenda" aos três filmes anteriores de Coppola ou o abrir de um novo ciclo. Sabemos, isso sim, que é filme ainda mais depurado que os anteriores, onde ainda menos se passa e ainda mais fica por dizer. A fotografia solar de mestre Harris Savides, o olhar observacional sobre a fauna de Los Angeles, o modo como se parece "morder" gentilmente a mão que dá de comer, fazem do filme membro de pleno direito da turma de "regresso aos anos 1970" que se tem manifestado no mais interessante cinema americano recente. E não há nada de mal nisso - "Algures" é filme que se inscreve sem problemas numa genealogia e numa carreira. Isso não faz dele o melhor filme de Sofia Coppola - talvez porque, de facto, haja uma sensação de "rodar em seco" (que a própria cineasta comenta no plano de abertura) - mas faz dele um objecto sedutoramente intrigante, uma espécie de écrã branco onde cada um poderá projectar o que bem entender.
Não se venha aqui à espera daquilo que "Algures" não pode ser. Mas, se se deixarem os preconceitos à porta, pode-se encontrar nele muito mais do que se poderia esperar.

13 Maio - Despojos de Inverno


Título original: Winter's Bone

De: Debra Granik

Com: Jennifer Lawrence, John Hawkes, Kevin Breznahan, Dale Dickey, Garret Dillahunt
Género: Drama
Classificação: M/12
Origem: EUA
Ano: 2010
Cores, 99 min
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Vencedor do Grande Prémio do Júri e o Prémio de argumento no Festival de Cinema de Sundance 2010

Nomeações para os Óscares 2011 (4) * MELHOR FILME * MELHOR ACTRIZ PRINCIPAL (Jennifer Lawrence) * MELHOR ACTOR SECUNDÁRIO (John Hawkes) * MELHOR ARGUMENTO ADAPTADO


A viver nas montanhas Ozark, no estado norte-americano do Missouri, com um pai traficante de drogas e uma mãe incapacitada devido a uma depressão profunda, Ree Dolly (Jennifer Lawrence), de 17 anos, é a alma da família e o único apoio de Sonny (Isaiah Stone) e Ashlee (Ashlee Thompson), os seus irmãos mais novos. O seu pai, depois de dar a casa como fiança num negócio obscuro, desapareceu sem deixar rasto e é procurado pela polícia. Agora, para não perder a casa onde vive, Ree terá de encontrar o pai, nem que para isso tenha de percorrer todos os recantos das montanhas. Nessa busca incessante pelos lugares prováveis e improváveis, todos a tentam dissuadir, mas a rapariga tem um único objectivo em mente: proteger a sua família, custe o que custar.

Jorge Mourinha, in PÚBLICO

Costuma dizer-se que "mais vale cair em graça do que ser engraçado" - e a segunda longa-metragem de Debra Granik, uma das sensações do cinema independente americano de 2010 e um dos "outsiders" dos Óscares 2011 com quatro nomeações, é um bom exemplo disso, inscrevendo-se sem esforço na linhagem "rural" da qual fitas como "Ballast", de Lance Hammer, ou "Histórias de Caçadeira", de Jeff Nichols, são bons exemplos.


Em "Despojos de Inverno", ambientado nas montanhas Ozark na fronteira entre os estados de Missouri e Arkansas, uma miúda de 17 anos que um pai ausente e uma mãe doente e catatónica já forçou a tornar-se na mulher da casa vê-se obrigada a descobrir o que aconteceu ao pai para impedir que as autoridades a expulsem da casa - nem que para isso tenha de enfrentar o código de silêncio dos clãs da zona, para os quais as únicas saídas para sobreviver no meio da pobreza são o serviço militar ou o crime. Granik conjuga um olhar atento, e nada condescendente, sobre uma comunidade que parece saída do fundo dos tempos com uma estrutura discreta e fluida de "thriller", mas "Despojos de Inverno" é ainda filme um bocadinho "tolhido", ao qual falta um pouco mais de confiança para "descolar" de algum convencionalismo formal e, sobretudo, de uma certa indecisão no rumo a dar à história. Isso não nos deve distrair do facto de "Despojos de Inverno" ser um bom filme, inteligente, sério, atento - mas é pena que seja precisamente este o filme que "caiu em graça" junto da crítica internacional, quando "Ballast" ou "Histórias de Caçadeira", que lhe são grandemente superiores dentro da mesma estética, pouco ou nenhum impacto tiveram...

6 Maio - O Mágico (2 sessões: 15: 30 e 21:30)


Título original: L'illusionniste

De: Sylvain Chomet

Com: Jean-Claude Donda (voz), Eilidh Rankin (voz)
Género: Drama, Animação, Comédia
Classificação: M/12
Origem: GB/FRA
Ano: 2010
Cores, 79 min
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Se até aos anos 50 o "music hall" tinha um enorme peso no mundo do espectáculo, a partir dos finais dessa década, especialmente com a aparição do rock e das super estrelas da música, o interesse do público começa a mudar de direcção. E é assim que o nosso mágico percebe que a sua actividade como ilusionista está em perigo e que, se nada fizer contra isso, cairá na miséria como tantos outros artistas de renome. Por esse motivo abandona os grandes salões de Paris e segue o seu rumo em direcção à Escócia onde encontra Alice, uma rapariga muito especial que mudará toda a sua forma de viver. Um filme de animação realizado por Sylvain Chomet ("Belleville Rendez-Vous" nomeado para Óscar em 2004) a partir de um argumento original de Jacques Tati, escrito em 1956 em forma de uma carta a Helga Marie-Jeanne Schiel, sua filha bastarda. Nomeado para melhor filme de animação para os Globos de Ouro na edição de 2011 (cuja cerimónia decorrerá a 16 de Janeiro).

Jorge Mourinha, in PÚBLICO
O Mágico - Sim, Alice, a magia existe

A partir de um guião original de Tati, o autor de "Belleville Rendez-vous" animou uma pequena elegia melancólica sobre o tempo que passa. Poesia em movimento Convirá explicar desde já o essencial: o novo filme do animador francês Sylvain Chomet não é "Belleville Rendez-vous", apesar dos muitos pontos de contacto. E, apesar de se basear num argumento que Jacques Tati deixou por filmar, também não é o filme que Tati nunca chegou a fazer. "O Mágico" é outra coisa - um encontro a meio caminho dos dois universos, Tati sem ser Tati, Chomet sem ser Chomet, amalgamando elementos de ambos (e também da banda-desenhada clássica, com um perfume da "linha clara" francobelga) para construir uma pequena elegia melancólica sobre um tempo perdido para nunca mais voltar.
Faz sentido que assim seja: esta animação de aspecto caseiro e artesanal (apesar das evidências informáticas em vários planos) literalmente não pertence aos nossos tempos. Nem lhes quer pertencer.
Nostálgica, mas nunca serôdia, tem um respeito imenso pelo trabalho de Tati, mas está mais próximo do realismo dos "Angry Young Men" britânicos - e sobretudo de filmes como "The Entertainer" (1960), o clássico de Tony Richardson sobre um artista de vaudeville (Laurence Olivier) em decadência.
Também o ilusionista do título, o sr. Tatischeff (com os traços de Tati e usando o seu verdadeiro apelido), é uma relíquia de um passado moribundo, neste final dos anos 1950 em que os teatros de music-hall estão cada vez mais vazios e são as bandas rock que começam a arrastar audiências. Mas, num espectáculo de ocasião numa ilha escocesa, descobre uma fã na adolescente que trabalha na estalagem onde ficou alojado.
Alice deixa-se seduzir pela magia do "país das maravilhas" que o sr. Tatischeff parece convocar por milagre (não por acaso, há um coelho rezingão que rouba o filme sempre que aparece e sublinha a ligação pontual a Lewis Carroll), e acompanha-o até Edimburgo, onde desabrocha para a vida ao mesmo tempo que o ilusionista compreende que a magia que ele cria já não tem lugar no mundo moderno.
É essa magia que Chomet recria apaixonadamente em "O Mágico", convocando o espírito de Tati a cada momento. Mesmo que seja evidente que, aqui e ali, o mestre teria explorado os gagues de maneira diferente, mesmo que se sinta que a história é demasiado frágil para sustentar uma duração de longa-metragem, percebe-se que Chomet não quis substituir-se a Tati nem fazer um "filme à maneira de"; em vez disso, há um encontro de universos que, de qualquer maneira, já estavam bastante sintonizados (Tati já estava omnipresente em "Belleville Rendez-vous"), aqui mais do lado assumido de uma homenagem sentida e sensível, da vontade de não deixar que a sua memória se perca e que a sua magia desapareça. Tarefa quase impossível que, contra todas as expectativas, o realizador francês leva a bom porto: por 80 minutos, Tati está ali, à nossa frente. Não em carne e osso, mas em espírito. E o impossível acontece. Afinal, a magia sempre existe.

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