10 Setembro - Shutter Island


Título original: Shutter Island

De: Martin Scorsese

Com: Leonardo DiCaprio, Mark Ruffalo, Ben Kingsley, Emily Mortimer
Género: Drama, Thriller
Classificação: M/16
Origem: EUA
Ano: 2010
Cores, 138 min
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EUA. Verão de 1954. O xerife Teddy Daniels (Leonardo DiCaprio) e o seu parceiro Chuck Aule (Mark Ruffalo) são enviados para o Hospital Psiquiátrico Ashecliffe, na ilha Shutter, onde estão internados os mais perversos criminosos do país. O caso prende-se com Rachel Solando, uma perigosa assassina em série que desapareceu inexplicavelmente da sua cela e cuja única pista parece ser uma folha de papel com uma pergunta indecifrável.
Os médicos, funcionários e enfermeiras da instituição não parecem empenhados em cooperar com a investigação e há algo de particularmente misterioso com Dr. Cawley (Ben Kingsley), o director do hospital. Com um furacão a aproximar-se, rodeados por um ambiente psicótico e pacientes perigosos, ambos percebem que as suas vidas estão em risco e que podem não conseguir sair vivos desta ilha maldita.
Realizado por Martin Scorsese, é baseado na obra "Paciente 67" de Dennis Lehane (também autor de "Mystic River", adaptado para cinema por Clint Eastwood em 2003).


Jorge Mourinha, in PÚBLICO, em 23 de Fevereiro de 2010
A teoria da conspiração
Um magistral exercício de cinefilia elevada à potência máxima
Impõe-se um aviso prévio e inevitável: "Shutter Island" tanto mais impressionará quanto mais o espectador se abandonar sem restrições ao seu pesadelo claustrofóbico e progressivamente mais desorientante. É aí, nesse estado de vigília acordada entre o sonho e a realidade, que o novo filme de Martin Scorsese ganha toda a sua razão de ser: no modo como ele vai desconstruindo progressivamente uma realidade reconhecível até nada restar a não ser a nossa própria dúvida em relação ao que estamos a ver.
A imagem, nas mãos de um mestre, pode induzir em erro - já Hitchcock o dizia, mas "Shutter Island" desvia Hitchcock por via de De Palma para depois o alinhar com Fuller, Bava, Argento, Lang, Murnau, Tourneur e outros mestres da série B reavaliados como dignos da série A. E, já agora, está mesmo paredes-meias com o cinema de terror, é um objecto gótico e barroco onde Leonardo di Caprio, detective traumatizado pelas suas experiências na II Guerra, enviado a um hospital psiquiátrico numa ilha isolada ao largo de Boston, desce aos infernos onde a realidade e a loucura se fundem.
Exercício de estilo, pretexto para demonstrar como aprendeu as lições de tudo o que viu e as fez suas, manifestação de virtuosismo? Sim, sim, sim - mas sem a frieza do aluno aplicado, antes com o prazer mal disfarçado de quem tem gosto naquilo que faz e de quem o faz por prazer. É, aliás, isso que explica como este filme que, noutras mãos, seria uma espécie de De Palma-ersatz se torna, nas de Scorsese e do seu director de fotografia Robert Richardson, numa espantosa carta de amor ao cinema de género, das séries B fantásticas que Val Lewton produziu e Jacques Tourneur dirigiu para a RKO ("A Pantera", "Zombie") ao giallo italiano de Mario Bava ("A Máscara do Demónio") ou Dario Argento ("O Pássaro com Plumas de Cristal"), passando pelos grandes filmes negros da década de 1950 e pelos "Mabuse" de Lang ou o "Gabinete do Dr. Caligari" de Wiene (e é só impressão nossa, ou há ali ecos de Samuel Fuller e de Michael Powell?).
Isso faz de "Shutter Island" um "cadáver esquisito" tanto mais inesperado quanto não é, de todo, disto que estamos à espera hoje de um filme "de estúdio" com Leonardo di Caprio (que, a propósito, é um erro de "casting"; por mais que tente, não consegue atingir o nível de intensidade necessária para habitar a sua personagem). Scorsese filma como se houvesse sempre um detalhe inexplicavelmente fora do sítio, como se tudo isto fosse uma enorme alucinação, uma mistificação onde nunca sabemos o que é verdade e o que é mentira, sublinhada pela opressão da cenografia de Dante Ferretti e pela magnífica escolha de compositores contemporâneos feita por Robbie Robertson para a banda-sonora.
E essa mistificação faz parte do jogo de Scorsese, brincando com a arte do cinema como se nunca tivesse feito outra coisa na vida (e, na realidade, nunca fez). A arte de um grande cineasta reside, muitas vezes, no modo como se apropria de uma peça de "pulp fiction" como é esta e dela faz um filme que não poderia ter sido feito por mais ninguém. "Shutter Island" não é um "grande filme" de Scorsese, uma daquelas obras-primas (que, de qualquer maneira, já ninguém espera dele) - mas, dentro dos "pequenos filmes" que todos os realizadores veteranos têm direito a fazer, "Shutter Island" é um grande, grandíssimo filme.

Setembro 2010 - Cartaz


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3 Setembro - Tudo pode dar certo


Título original: Whatever Works

De: Woody Allen

Com: Larry David, Adam Brooks, Lyle Kanouse, Evan Rachel Wood
Género: Comédia
Classificação: M/12
Origem: EUA/FRA
Ano: 2009
Cores, 92 min
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Boris Yelnikoff (Larry David) é um génio da física que sofre de insatisfação crónica e desprezo pelo género humano. Depois de perder a mulher num divórcio, um prémio Nobel e de quase ter perdido a sua própria vida numa tentativa de suicídio mal sucedida, resolve dar largas à sua misantropia e isolar-se numa pequena casa na cidade de Nova Iorque. Um dia encontra à sua porta Melody (Evan Rachel Wood), uma jovem fugitiva do Mississípi, cuja inocência e alegria de viver contagiante contrastam com o cinismo do cientista. Com o passar do tempo a doce rapariga instala-se em sua casa e invade a sua vida, preenchendo todas as lacunas do insatisfeito Boris. As suas vidas parecem perfeitas até ao dia em que os pais dela resolvem aparecer e revolucionar tudo à sua volta...
Uma comédia romântica sobre os encontros e os desencontros amorosos, que marca mais um regresso de Woddy Allen.


Luís Miguel Oliveira, in PÚBLICO, 10 de Fevereiro de 2010
Tudo Pode dar Certo
Pela milésima vez Woody Allen a girar em torno de si próprio. Com um duplo, um Mr Hyde, que é um achado e faz meio-filme: Larry David. Talvez não funcione duas vezes, mas esta encarnação da misantropia (uma misantropia "espectacular", mas capaz de uma brusquidão cavernosa) que é a personagem de David traz uma energia nada despicienda ao cinema de Allen: ouvimos basicamente as mesmas piadas e apartes que já ouvimos noutros filmes, mas com a sensação - um engano consentido, digamos assim, porque não há nada como um misantropo sedutor - de que as ouvimos pela primeira vez. A graça é que, criativamente, o filme é a perfeita ilustração do seu lema: "whatever works"...


Jorge Mourinha, in PÚBLICO, em 4 de Fevereiro de 2010
Ó tempo volta pra trás
O novo Woody Allen é um reencontro com o "velho" Woody Allen dos seus tempos áureos? Sim, mas não do modo que estão a pensar
Tivesse Woody Allen assinado este "Tudo Pode Dar Certo" nos seus tempos áureos dos anos 1970 e 1980, talvez tivéssemos olhado para ele como um Allen menor e hoje estivéssemos à beira de uma reavaliação. Se tivesse sido rodado logo a seguir ao soberbo "Match Point", teríamos ficados convictos da ressurreição definitiva de um cineasta que andou um bocado aos papéis. Mas, como o vemos hoje, "Tudo Pode Dar Certo" é um dos "fogachos" pontuais que mostram ainda haver vida no velho mestre, aqui retomando de modo inspirado as coordenadas das suas velhas comédias nova-iorquinas a meio caminho entre o "screwball" clássico do neurótico à deriva e o romantismo terminal da busca do amor e do sentido para a vida.
Claro que o "herói" nominal, aqui interpretado por Larry David (ele de "Calma, Larry!" e "Seinfeld"), é basicamente, mais uma vez, Allen ele próprio mal disfarçado, mesmo que David empreste ao seu físico resmungão e misantropo uma "patine" confrontacional que o realizador dificilmente conseguiria invocar. Claro que o romance central (entre David no papel de um intelectual resmungão e uma soberba Evan Rachel Wood no papel de uma ingénua sulista caída de pára-quedas em Nova Iorque de quem ele vai ser um misto de mentor intelectual e amante incrédulo) parece decalcado de outros filmes (lembrámo-nos de "Manhattan", "et pour cause"). E, apesar (ou se calhar por causa) do soberbo trabalho fotográfico de Harris Savides, todo feito de subtis variações de luz e sombra, há muito de teatral nesta encenação do que, descobre-se entretanto, era um guião antigo que tinha ficado por rodar "na gaveta".
"Tudo Pode Dar Certo" é, então, uma história contemporânea de "Manhattan" que Allen, paradoxalmente, escrevera originalmente a pensar num actor específico (o comediante Zero Mostel, que recordamos, por exemplo, dos "Producers" originais de Mel Brooks, "Por Favor Não Mexam nas Velhinhas"), e que recuperou, reviu e actualizou para este filme. É isso que explica, ao mesmo tempo, o regresso das piadas imparáveis de "nonsense" "vintage", e a amargura singular dos seus últimos filmes que vem colorir o conjunto, como se "Tudo Pode Dar Certo" fosse uma síntese contemporânea dos Allen "clássicos" e "modernos" - o que esbarra logo a seguir na constatação de que os melhores dos Allen "modernos" ("Match Point" à cabeça de um pequeno contingente) são variações com maior ou menor originalidade sobre os seus motivos clássicos.
Mas isso, contudo, não nos deve afastar do essencial. E o essencial é que "Tudo Pode Dar Certo" vai reconfortar todos aqueles que achavam que Allen já não tinha nada a dizer e reacender a esperança (mesmo que vã) de ainda haver um "Manhattan" no veterano autor. Este filme não é, claro, outro "Manhattan", mas já ficamos contentes por ser outro "Balas sobre a Broadway". Afinal, tudo pode mesmo dar certo...