29 Maio 2009 - Revolutionary road


Título original: Revolutionary Road
De: Sam Mendes

Com: Leonardo DiCaprio, Kate Winslet, Kathy Bates

Género: Drama

Classificacao: M/16

Origem: EUA/GB

Ano: 2008

Cores, 119 min

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João Lopes in Diário de Notícias, 31 de Janeiro

Já lá vão onze anos desde que o mundo foi abalado por um fenómeno chamado «Titanic». Para além dos espantosos números de bilheteira, o filme de James Cameron conseguiu a proeza de consagrar um novo par romântico: Kate Winslet e Leonardo DiCaprio.
Talvez se esperasse que Winslet/DiCaprio se transformassem numa "receita" de muitos filmes, à maneira de outros pares clássicos de Hollywood. Mas não. Foi preciso esperar até agora para os vermos juntos naquele que é um dos títulos fortes da produção americana de 2008: «Revolutionary Road», de Sam Mendes. Muita coisa mudou. Leonardo DiCaprio, porventura o mais subtil actor americano da geração nascida na década de 70, continuou a exibir a sua versatilidade através do trabalho com Woody Allen («Celebridades»), Steven Spielberg («Apanha-me Se Puderes») ou Martin Scorsese («Gangs de Nova Iorque», «O Aviador» e «Entre Inimigos»). Quanto a Kate Winslet, a sua fulgurante maturação desemboca na espantosa composição em «Pecados Íntimos», de Todd Field. «Revolutionary Road» nasce da confluência de tudo isso (para além de valer a pena não esquecer que Kate Winslet e Sam Mendes são casados desde 2003): estamos perante um filme ancorado no trabalho específico dos actores, sendo inevitável recordar que a experiência do realizador como encenador teatral não é alheia à excelência dos resultados. Mas seria redutor encarar «Revolutionary Road» como um mero tour de force dos actores. É bem certo que eles são, de uma só vez, cristalinos e imprevisíveis na representação das crises de um casal do Connecticut, em meados dos anos 50. Seja como for, ao adaptar o romance homónimo de Richard Yates (publicado em 1961), a realização de Sam Mendes visa a complexidade de uma época de grandes transformações nos modos de vida da "classe média", desse modo apostando na revitalização do género melodramático tal como foi cultivado por mestres como Vincente Minnelli ou George Cukor. Da arquitectura da época ao kitsch dos automóveis ou elementos de decoração, nada disso existe como ostentação. Ao contrário das ficções de raiz televisiva, aqui nada é estritamente decorativo. Através de elementos como esses, Sam Mendes ajuda-nos a perceber a dolorosa distância entre a ideologia de felicidade de uma época e os sentimentos mais fundos, porventura menos confessáveis, de cada personagem: «Revolutionary Road» é um filme sobre as diferenças entre a utopia e a realidade, o desejo de amar e a crueza, afinal banal, de uma relação amorosa.

22 Maio 2009 - O Wrestler


Título original: The Wrestler
De: Darren Aronofsky
Com: Mickey Rourke, Marisa Tomei, Evan Rachel Wood
Género: Drama
Classificacao: M/16
Origem: EUA
Ano: 2008
Cores, 115 min
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Luís Miguel Oliveira in PÚBLICO, 26 de Fevereiro
É um filme sobre glórias passadas e queda - Randy, como Rourke, foi "grande" nos anos 80
Mickey Rourke não é apenas o actor de "O Wrestler". É o seu tema, o seu objecto, a sua razão de ser. Diz-se muitas vezes que todos os filmes acabam por ser uma espécie de "documentário" sobre os seus actores. É verdade, e quanto mais o tempo passa sobre um filme mais essa verdade é evidente (como dizia alguém, o destino da "ficção" é tornar-se "documento"). Ainda assim, é raro encontrar um filme que, como "O Wrestler", leve essa ideia tão a peito. O seu acto essencial é ser testemunha de uma presença, da presença de um actor, da presença deste actor. Sem Rourke - e sem a história de Rourke, que está, por assim dizer, "incrustada" em cada milímetro do seu corpo e do seu rosto - o filme não faria sentido, ou faria um sentido completamente diferente.
Claro que a dissociação continua a ser possível, e não só possível como desejável. É um actor e uma personagem, a sobreposição não é absoluta, e a história de Mickey Rourke não é bem a história do "wrestler" Randy the Ram. Mas há ecos de um no outro, ou não fosse "O Wrestler" um filme sobre glórias passadas e, se não sobre a decadência, sobre uma queda, um confronto com a vulgaridade do mundo.
Randy, como Rourke, foi "grande" nos anos 80, e agora deixou de ser capaz de encontrar um espelho que reflicta essa grandeza - não tão longe assim, e é uma lembrança que nos ocorre a certa altura, da Gloria Swanson do "Sunset Boulevard" de Billy Wilder, esse filme sobre "come backs" e sobre o crepúsculo dos deuses... É o mesmo mundo "encolhido", e dir-se- ia que é nisso que Darren Aronofsky pensa quando trata a relação do enorme corpo de Rourke com certos décors. As cenas no supermercado onde Randy faz uns biscates no intervalo entre dois combates, por exemplo: há ali uma espécie de desproporção, como se Randy fosse o protótipo do "leão enjaulado"...
Um mundo vulgar, mas cheio de dignidade. A principal proeza do olhar de Aronofsky está nessa justeza. Consegue filmar um mundo, ou submundo, tão codificado como os dos "wrestlers" sem tombar no grotesco ou na caricatura. E confrontar-se, por sua vez, com uma vulgaridade corriqueira, com uma urbanidade cinzenta e deprimente, sem nunca as menorizar nem sequer julgar, trazendo-lhes uma luminosidade surpreendentemente tocante.
As cenas com Rourke e a maravilhosa Marisa Tomei, sobretudo as cenas diurnas dos seus encontros no café ou nas lojas, trabalham numa simplicidade despojada de adornos que é sempre uma maneira de fazer justiça às personagens. Numa dessas cenas Randy faz o elogio dos anos 80 através do "rock", aquele "rock FM" não muito sofisticado que ele gosta de ouvir ("depois", diz, "apareceu o Kurt Cobain e estragou tudo"). Noutra cena joga, com um miúdo seu vizinho, um velhíssimo jogo de consola, enquanto o miúdo lhe fala dos jogos novos, de que Randy já ouviu falar mas não tem interesse em experimentar. Pequenas reiterações do carácter "perdido no tempo" da personagem de Rourke.
Aronofsky, em vez de filmar para a "recuperar", oferece-lhe a possibilidade do mergulho total nessa "perdição". Mas no último plano do filme (que é, afinal de contas, um "mergulho") a diferença entre uma maldição e uma bênção torna-se uma questão de perspectiva: Randy está destinado a ganhar-se por aquilo que o perde. E isso é muito bonito.

15 Maio 2009 - A troca


Título original: Changeling
De: Clint Eastwood
Com: Angelina Jolie, Gattlin Griffith, Michelle Martin, John Malkovich
Género: Drama
Classificacao: M/12
Origem: EUA
Ano: 2008
Cores, 141 min
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Luís Miguel Oliveira in PÚBLICO, 9 de Janeiro
Este é um filme de um Clint que trocou o instinto profundo que alimenta os seus melhores filmes pelas boas maneiras que dominam os seus filmes assim-assim.
Nos tempos heróicos em que os miúdos dos "Cahiers" tomaram em mãos a tarefa de resgatarem Samuel Fuller ao opróbrio do ogre-vermelho Georges Sadoul (e à indiferença dos americanos), o mais miúdo deles todos, Luc Moullet, estabeleceu uma tipologia definitiva: havia dois Fullers, um Fuller "temperamental" e um Fuller "racional", e o primeiro era mais interessante do que o segundo.
Fora, eventualmente, o plágio, não incorremos em nenhum crime se transpusermos essas categorias para Clint Eastwood, pela boa razão de que elas nos vêm à memória durante o visionamento de "A Troca". Este é um filme de um Clint em modo razoável (digamos, uma razão sem fúria), um Clint que trocou o instinto profundo que alimenta os seus melhores filmes (o instinto que, como em Fuller, originou não poucos equívocos) pelas boas maneiras que dominam os seus filmes assim-assim (se quiserem, "As Cartas de Iwo Jima" versus "As Bandeiras dos Nossos Pais"). Um Clint que prestou menos atenção às suas tripas e mais àquela conversa do "último dos clássicos" em que teria que acabar por acreditar de tanto lha repetirem aos ouvidos. Inteligente e competente, mas também disperso e decorativo (e coisa rara em Clint, com planos a mais, cenas que se prolongam sem outra razão aparente que não seja fazer brilhar os actores), "A Troca", se não for o filme mais indistinto que Clint fez desde "The Rookie" (em 1991), é o que tem mais momentos indistintos, mais redondos, que mais se contenta com a eficácia melodramática, que mais cultiva o bem-acabado pelo bem-acabado. Falha até a relação directa com a Hollywood clássica (tudo se passa em Los Angeles nos anos 20 e 30, fala-se de Óscares, de Tom Mix e de filmes de Capra e de DeMille), esboçada mas reduzida a rodapés referenciais nunca verdadeiramente integrados. Isto deixado claro, podemos abrir a porta da ambivalência. Nem tudo é indistinto em "A Troca". Quase subrepticiamente vislumbram-se "flashes" de um trabalho que vem de trás, continuidades "eastwoodianas".
Marcas de "autoria", que são diferentes de simples marcas de "reconhecimento". Tal como não se trata de resgatar o "todo" pela "parte", antes de reiterar uma verdade óbvia: entre um filme pouco convincente de um bom cineasta e um filme pouco convincente de um cineasta qualquer é sempre preferível o filme pouco convincente do bom cineasta. Se, apesar do exposto, não conseguimos fazer "fine bouche" a "A Troca" isso acontece pelas duas razões que tentaremos explicar a seguir. Uma, a insistência, tremendamente "eastwoodiana", num conflito entre o indivíduo e um grupo, conflito que a lei, bloqueada, deixou de poder regular. Richard Schickel, na entrevista concedida ao Ípsilon há semanas, lembrava que em "Dirty Harry" o confronto fundamental não era entre a personagem de Eastwood e o assassino, mas entre Eastwood e a corporação policial a que ele pertencia. A polícia de "A Troca" lembra a polícia de "Dirty Harry", sendo como é um paroxismo de corrupção e incompetência, incapaz de aplicar a lei sem ser de forma deturpada, e em função de interesses próprios. Ou seja, como em tantos filmes de Eastwood, tudo está "fora da lei". O desenho deste estado de coisas e a sua preponderância como conflito essencial mantêm o filme coeso durante boa parte da sua duração, tanto que, quando desaparecem (essa parte da intriga "resolve-se" a uma boa meia-hora do final), "A Troca" perde força, e se esvai em diversos "falsos epílogos", como um longo apêndice justificado apenas pela necessidade de continuar a conduzir o melodrama sentimental (Angelina Jolie à procura de sinais do filho desaparecido) e o melodrama de crime e castigo (toda a história com o "serial killer", espécie de Scorpio dos anos 20 com uns pozinhos de "Mystic River").
Neste cenário, neste território "sem lei" que está muito próximo do do "western" ("genuíno" ou "urbano"), a personagem de Angelina Jolie é um equivalente óbvio de várias personagens de Clint. Sozinha e obstinada, ela é um pouco a "cowgirl" forasteira que chega a uma cidade corrupta e, por efeito directo ou indirecto da sua acção, a mete na ordem ("mutatis mutandis", é o momento em que a corrupção policial é desmascarada e condenada). É a narrativa que a põe nessa situação, certo; mas é a construção visual da sua personagem que a reforça, como se o seu modelo fosse o próprio... Clint Eastwood, o "cowboy" dos anos 60 e 70 (o sorriso desafiador, o sobrolho franzido, os grandes planos com a aba do chapéu a cair sobre a testa). É a verdadeira versão feminina do "Clint-ícone", com, no lugar da cigarrilha e da barba por fazer, uns lábios muito vermelhos, uns olhos muito azuis, um chapéu cor de azeitona (sempre tudo da mesma maneira, como se fosse de uniforme).
Espécie de cúmulo de um narcisismo temperado por um impulso pigmaleónico: Clint cria uma versão de si mesmo, um "travesti ao contrário", numa das mulheres mais bonitas do mundo. É a segunda razão.
De qualquer modo, não desesperemos: "Gran Torino" chega num par de meses, e pelo seu temperamento juramos nós.

8 Maio 2009 - Milk


Título original: Milk
De: Gus Van Sant
Com: Sean Penn, Emile Hirsch, Josh Brolin
Género: Drama
Classificacao: M/16
Origem: EUA
Ano: 2008
Cores, 128 min
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Vasco Câmara in PÚBLICO, 30 de Janeiro Gus Van Sant leva-nos até "somewhere over the rainbow". O crítico Nathan Lee, na revista "Film Comment", lançou uma "boutade" que pegou: escreveu que "Milk" é "o mais ''straight''" dos filmes de Gus Van Sant - um cineasta homossexual. Quis ele dizer que o filme sobre o autarca da câmara de São Francisco, homossexual (o primeiro político assumidamente gay a ser eleito para um cargo público nos EUA, estávamos nos anos 70), que ajudou a fazer de São Francisco um viveiro para as aspirações de uma comunidade e que hoje é ícone da militância gay, era um filme... convencional. Isso, "straight", um filme biográfico, um "biopic", com voz "off" e tudo. A "boutade" é irresistível. Mas gostaríamos de perceber o que é que tem de convencional contar uma história destas como quem conta a história de uma rua - a Castro Street, onde Milk chegou, viu e venceu (até ser morto por um colega de câmara, Dan White, em 1978) - como se essa rua fosse a rua daqueles filmes que a desaparecida Hollywood inventava para serem exaltadas as qualidades americanas. É isso mesmo: com uma história da História gay Gus Van Sant faz "americana", esse género tradicional, que era muito sobre o "centro" das coisas e sem permitir "desvios", que o cinema clássico americano cultivou no passado. Podemos dizer, aliás, do razoavelmente burlesco Milk, personagem em que Sean Penn miraculosamente desaparece: Mr. Milk goes do Castro, isto é, à Câmara de São Francisco, como Frank Capra pôs James Stewart, Mr. Smith, a ir a Washington, isto é, a pedir a palavra. Isto de ser aparentemente convencional, não tem nada de convencional. Portanto: é toda a América numa rua - e uma rua gay. ("Milk" é mesmo um filme político.) E essa forma de passar da história individual à história de muitas pessoas gay e, mais um passo em frente, à história de todas as pessoas, gay ou não, esse salto da rua ao país (e da América a todos nós), faz com que se sinta em "Milk" a vibração de uma epopeia humana. Concedendo que, depois de "Sunset Boulevard" (1950), um filme narrado por um morto não é proeza - o "testamento" que Milk deixou, para o caso de ser assassinado, coisa que previa que lhe iria acontecer, é a voz que nos acompanha em "Milk" -, já é assinalável, e é a pedra de toque deste filme comoventíssimo, o resultado da utilização das imagens de arquivo. Com elas, e com aquilo que Van Sant aprendeu nos seus filmes mais experimentais, como "Gerry" (2002), "Elephant" (2003) ou "Last Days" (2005) - de que "Milk" está próximo, mais do que de filmes, esses sim, convencionais como "O Bom Rebelde" (1997) ou "Finding Forrester" (2000) -, o realizador arrebata-nos. Leva-nos para um mundo imaginário, onírico, "somewhere over the rainbow". De um só fôlego, torna-se o criador de uma fábula - daquelas que falam de nós com uma luminosidade portentosa -, um prestidigitador da iconografia gay (o "Somewhere over the Rainbow" de Judy Garland é despojado e entregue à sua mais desesperada fantasia), um cronista de um período da História americana e de uma cidade. Desaparecida, que não volta mais (será que existiu ou foi mistificação da memória?). Milk morreu, depois veio a Sida, e o sexo e os anos 70 ficaram retidos no domínio da fantasia mais nostálgica, sobrando um extremado sentimento de perda. Por falar dos mortos: das coisas mais espantosas de "Milk" é a sensação de que estamos a ser olhados, interpelados, por quem já aqui passou, por quem já é História e deixou legado. "Milk" fala connosco, hoje. Da Proposta 6, que nos anos 70 quis impedir os homossexuais de serem professores (Milk ajudou a derrotar essa proposta legislativa), à Proposta 8, que hoje, na mesma Califórnia, negou a possibilidade de casamento de pessoas do mesmo sexo...? Sim, disso também, mas muito mais do que isso, o olhar é abrangente, é para a América inteira, é para os que se sentem excluídos. "Milk", pedaço de fantasmagoria que, afinal, deixa em aberto uma hipótese de renascimento, é um filme para todos. "É preciso dar-lhes esperança", dizia Harvey Milk. Tem-se dito que é o primeiro fantasma de Barack Obama a aparecer no cinema americano. Numa entrevista à revista "Attitude", Gus Van Sant concedia que sim. E ainda alguém consegue dizer que é um filme "convencional"?

1 Maio 2009 - O casamento de Rachel


Título original: Rachel Getting Married
De: Jonathan Demme
Com: Anne Hathaway, Rosemarie DeWitt, Debra Winger
Género: Drama
Classificacao: M/12
Origem: EUA
Ano: 2008
Cores, 114 min
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Vasco Câmara in PÚBLICO, 21 de Fevereiro
"O Casamento de Rachel" dá microfone a uma família para que ela se exponha. É nessa forma de dar e receber que está a festa.
E lembrámo-nos dos Talking Heads... Da forma como o "pós-punk" esquizóide, tal como praticado por três rapazes e uma rapariga, todos "arty", americanos e "educated", foi abraçando a "world music", o "outro", com sentido de aventura, exotismo e mantendo-se esquizóide até para espantar o politicamente correcto.
Lembrámo-nos da música dos Talking Heads (e por uma razão: Jonathan Demme, o realizador de "O Casamento de Rachel", interessou-se em 1984 pela banda em "Stop Making Sense") nas sequências de casamento de "Rachel Getting Married": todas as cores e ritmos do mundo, hip hop, samba, soul, convivem numa casa americana, abastada e "educated" - e multirracial, e algo esquizóide e razoavelmente exótica.
Houve quem se risse com essa visão que irrompe, exuberante: uma América demasiado ideal, confinada a um "nicho" social e cultural, disse-se, um olhar paternalista, e mais desejo e fantasia do que outra coisa. Demme retorquiu (citamos a conferência de imprensa no Festival de Veneza de 2008) que essa é a sua América, ela existe, é a que sempre conheceu, apenas não aparece nos filmes - e criou um pequeno acontecimento quando sentenciou que "O Casamento de Rachel" mostrava o desejo de uma nova era, "desejo de Obama".
Seja como for, o que podemos dizer é que no cinema de Demme, e falamos daquele que está antes de "O Silêncio dos Inocentes" (1991) ou de "Filadélfia" (1993), a energia, a excentricidade sempre foram o "american way", forma da América se cumprir ("Something Wild", de 1986, é um título emblemático). É essa a América que Demme abraça. É isso, o abraço, mais do que qualquer efeito de assinatura, o traço do cinema do realizador: a disponibilidade, calorosa, para personagens que começam por parecer excêntricas, bizarras, e que acabam por "fazer corpo" e ser o corpo - americano.
Esse abraço é dado aos membros da família de "O Casamento de Rachel". Kym (Anne Hathaway), toxicodependente, sai por um fimde- semana da clínica de desintoxicação para participar nos rituais do casamento da irmã mais velha, Rachel (Rosemarie DeWitt). Família abastada, multirracial (tudo sem ênfase, é assim, não há volta a dar, pós-racial então), rituais de música e dança do mundo. E é como se estivéssemos lá, com a ajuda de câmaras digitais entregues aos actores, que filmam o que se passa para tudo ter o aspecto de "home movie", e com a presença tutelar de Robert Altman ("O Casamento", de 1978) e do Dogma 95 - inspirações assumidas por Demme para destruir e voltar a erguer o formato da "comédia dramática".
Mas se a família é um lugar estranho para se estar, se os esqueletos começam "a sair do armário" num fim-de-semana de festa, os ressentimentos, as acusações - uma mãe (Debra Winger) emocionalmente afastada, a disputa entre as irmãs, uma morte no passado da família... -, Demme não faz um filme sobre "segredos e mentiras". Como naquela sequência em que a família discute quando entra em casa, iluminando as várias assoalhadas na escuridão, "O Casamento de Rachel" vai dando a palavra a cada uma das personagens: dá-lhes microfone e convoca-as para que elas façam o seu "outing". Pode haver aqui Altman, mas sem o cinismo. Os procedimentos podem também ser os do manifesto dinamarquês de Lars von Trier e dos outros, mas sem a ideia de que o cinema é um acto de violação. É por isso que o filme de que nos lembramos, e talvez não seja por acaso que em relação a ele se tenha falado também de uma "nova era" americana, é "Milk", de Gus Van Sant - um filme em que as personagens olham para o espectador (o que não costuma acontecer nos filmes de Van Sant) e não se esquivam ao olhar do espectador.
É nessa disponibilidade para abrir feridas e sará-las, nesse "outing", forma de dar e receber, que está a festa de "O Casamento de Rachel".

Maio 2009 - Cartaz


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