27 Novembro - Sacanas sem lei


Título original: Inglourious Basterds

De: Quentin Tarantino

Com: Brad Pitt, Diane Kruger, Daniel Bruhl, Mike Meyers, Michael Fassbender, Mélanie Laurent, Eli Roth, Christoph Waltz
Género: Drama, Guerra
Classificação: M/16
Origem: Alemanha/EUA
Ano: 2009
Cores, 154 min
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Quentin Tarantino junta-se a Brad Pitt, Diane Kruger, Daniel Bruhl, Christoph Waltz, Mike Meyers, Michael Fassbender e Mélanie Laurent num tributo a "Quel Maledetto Treno Blindato", um filme de guerra italiano, de 1978, realizado por Enzo Castellari e que saiu nos EUA com o título "The Inglorious Bastards".
Durante a II Grande Guerra assistem-se a corajosas lutas: do tenente Aldo Raine (Brad Pitt), conhecido como Aldo, o Apache, especialista nos escalpes e líder dos Sacanas, um grupo de soldados americanos escolhidos para espalhar o terror entre os nazis, eliminando-os com especial requinte; de Bridget von Hammersmark (Diane Kruger), uma famosa actriz alemã que na verdade colabora com a Resistência Francesa; e de Shosanna (Mélanie Laurent), uma rapariga judia sobrevivente ao massacre da sua família que acaba em Paris, a gerir um cinema durante a ocupação dos alemães.
Nessa sala de cinema, durante a grande estreia de "O Orgulho da Nação", um filme de propaganda nazi, em que o próprio Hitler e os principais líderes tinham previsto marcar presença, o grupo dos Sacanas e Shosanna cruzam-se com um objectivo comum: a destruição do III Reich.


Luís Miguel Oliveira, in PÚBLICO, 26 de Agosto de 2009
Justiça poética e outros assuntos
Ao centrar o filme no poder das imagens e das palavras, Quentin Tarantino dá a "Sacanas sem Lei" uma dimensão que transcende em muito a questão da Segunda Guerra Mundial.
Faríamos mal em acreditar que "Sacanas sem Lei" é o simples filme de aventuras na Segunda Guerra Mundial que a publicidade (alguma, pelo menos) tem querido vender. Tarantino recolhe elementos de múltiplos filmes de aventuras, na Segunda Guerra Mundial e não só (em certos momentos, a memória do "western", como género e como "mundo", é extremamente importante), mas o que faz com eles está bem longe de ser simples ou, sequer, típico. Por outro lado, e isto também é uma razão, esta Segunda Guerra Mundial não é bem a que conhecemos. Ou é a que conhecemos mas com um "twist", o "twist" suficiente para a lançar numa espécie de universo alternativo. Na cena crucial de "Sacanas sem Lei", quando as pilhas de rolos de película de nitrato pegam fogo ao estado-maior do Terceiro Reich, torna-se claro que Tarantino não reconstitui, reinventa, e que o seu filme é um exercício de história alternativa, de história ficcional.
Não necessariamente implausível nos seus pormenores decisivos: a película de nitrato ardia facilmente (como, se por mais nada, o leitor saberá através do "Cinema Paraíso" de Tornatore...) e os nazis gostavam muito de assistir a estreias de gala dos seus filmes de propaganda. Essa cena do incêndio, e como Tarantino não se tem cansado de dizer em entrevistas, reflecte o "poder do cinema" de modo simultaneamente "literal e metafórico". Ora tendo o Terceiro Reich vivido pelo cinema, e sido em parte não negligenciável uma construção para o cinema, que aqui o Terceiro Reich morra pelo cinema é menos um cúmulo absurdista do que um fecho de círculo, tão lógico e inevitável como qualquer outro. Num certo sentido, a Segunda Guerra de Tarantino é uma guerra decidida pelas imagens, combatida com as imagens.
Mais uma vez, o exagero é muito leve: toda a propaganda de qualquer dos lados em conflito sabia-o bem, fosse o lado dos alemães, dos americanos ou dos ingleses (Churchill chegou a comparar um filme, o "Mrs Miniver" de Wyler, a um "bombardeiro"). Elemento essencial da propaganda, consistia numa apropriação da imagem do inimigo, para a desviar, para a tornar na caricatura de si próprio. Em "Sacanas sem Lei" isto é, mais uma vez, "literal e metafórico": tudo se joga pela maneira como se podem controlar, interferir, dominar, as imagens do inimigo. É o que faz Shosanna, a miúda judia que gere o cinema que é o lugar central da acção, quando interpõe, por entre as imagens do filme de propaganda dos nazis, planos de si própria, em estética quase "riefenstahliana", a anunciar aos presentes o que lhes vai acontecer (e o plano em que o ecrã está já a ser consumido pelas chamas mas ainda se vê a imagem da rapariga a gritar algo como "olhem bem para mim, eu sou o rosto da vingança judaica!" é o plano mais absolutamente assombroso de "Sacanas sem Lei"). E é, a outro nível, o que fazem os "Bastardos", o grupo de americanos que dá ao nome ao filme mas tem uma presença quase secundária (em termos de "screen time", pelo menos), com a história das suásticas cravadas nas testas dos nazis que encontram pelo caminho: usar a imagem do inimigo, dominá-la, e utilizá-la contra ele (alguns dos nazis de "Sacanas sem Lei" terão tido mais dificuldade em viver anonimamente na América do Sul, depois da guerra, do que os seus equivalentes da vida real).
Justiça poética, claro, que como sabemos não tem forçosamente a ver nem com "justiça" nem com "poesia". É outra das coisas que liga "Sacanas sem Lei" aos filmes de Tarantino como "Kill Bill" ou "Deathproof"; e a personagem de Shosanna, cuja família é morta na primeira sequência, obviamente se aparenta com as mulheres em missão de vingança desses filmes.
Filme sobre imagens, "Sacanas sem Lei" não é menos um filme sobre palavras. Tarantino, dialoguista genial que chega ao ponto, nas entrevistas, de dizer que se vê como um "escritor" antes de ser ver como um cineasta, constrói praticamente todas as sequências como "peças de conversa", integralmente assentes num delicado equilíbrio do poder decorrente da linguagem e de quem a usa, e de como a usa - não é por acaso que uma das cenas mais prodigiosamente tensas de "Sacanas sem Lei" (a da taberna, com o jogo das adivinhas) decorre sob o signo dos sotaques e das expressões idiomáticas (mesmo quando são apenas gestuais, como descobre o pobre oficial inglês interpretado por Michael Fassbender). E ao centrar o filme, com uma expressão quase teórica, no poder das imagens e das palavras, no poder da linguagem visual e da linguagem falada, Tarantino conquista-lhe uma dimensão fria, "intelectual", nem por isso demasiado subterrânea, que transcende em muito a questão da Segunda Guerra Mundial. É um filme sobre o poder e sobre os instrumentos do poder, que hoje já não são analógicos mas digitais. Como se pega fogo a um monte de ficheiros de computador?


João Lopes, in DIÁRIO DE NOTÍCIAS, 27 de Agosto de 2009
Picasso, heterodoxia e antinazismo
Com Brad Bitt, Mélanie Laurent e Christoph Waltz (prémio de melhor actor em Cannes), Inglourious Basterds/Sacanas sem Lei é um filme em que Quentin Tarantino põe à prova as fronteiras da história e da dramaturgia clássica.
Dos EUA chegam-nos ecos de algumas polémicas sobre o grau de “verdade” dos factos encenados por Quentin Tarantino em Sacanas sem Lei. Parece-me uma discussão pueril, enredada nas exigências desse “verismo” de telejornal que nos quer reduzir a crianças inertes, para sempre amarradas aos bancos da escola. É mesmo uma discussão que nos faz recuar ao ponto de começarmos a pôr em causa a Guernica de Picasso porque os cavalos não estão muito “parecidos”... Será preciso lembrar que a questão da “aparência” figurativa ou factual não basta para entender o que aconteceu nas artes dos últimos 150 anos?
Sim, é verdade que Quentin Tarantino introduz delirantes derivações na sua “reconstituição” da Segunda Guerra Mundial, nomeadamente no tratamento de uma viagem de Adolf Hitler a Paris. Acontece que ele não está a fazer um tradicional filme de guerra. É mesmo duvidoso que Sacanas sem Lei se possa classificar, apenas, como filme de guerra (quanto mais não seja porque a expressão remete para um género altamente codificado da produção cinematográfica dos anos 40/50). Tal como em Pulp Fiction (1994) ou Jackie Brown (1997), a convocação de mil e uma referências cinéfilas desemboca numa mesma questão, central e obsessiva: o poder devastador das palavras. É verdade: Sacanas sem Lei é, no essencial, um filme de longos e elaboradíssimos diálogos através dos quais compreendemos que a identidade de cada um se está constantemente a decidir através da maior ou menor coincidência do seu corpo com a sua voz. Ou, se preferirem: da sua imagem com as suas palavras. Será preciso acrescentar que, em tempos de banalização digital, estamos perante uma complexa e exuberante celebração da dimensão mais carnal do cinema? Acredito que os mais inquietos se mostrem perturbados com a heterodoxia dos artistas e perguntem: e a ideologia? Essa é fácil: é antinazi.

E ainda um texto de Miguel Esteves Cardoso

20 Novembro - Sujidade e Sabedoria


Título original: Filth and Wisdom

De: Madonna

Com: Ade, Gogol Bordello, Olegar Fedoro
Género: Comédia, Drama, Musical
Classificação: M/16
Origem: GB
Ano: 2008
Cores, 81 min


Três amigos dividem uma casa em Londres. Cada um deles sonha com o estrelato: A.K. é um imigrante acabado de chegar da Ucrânia que se considera sábio e filósofo e anseia tornar-se uma estrela com a sua banda de punk cigano, e que vai subsistindo com as suas interpretações travestis para homens casados; Juliette sonha partir para África, numa missão humanitária, mas entretanto trabalha numa drogaria da zona; Holly é bailarina profissional e o seu grande sonho é dançar no Royal Ballet, mas por agora treina-se como "stripper" no Beechman's Exotic Gentleman's Club.

Vasco Câmara, in PÚBLICO, 18 de Setembro de 2009
Sujidade e Sabedoria
É, se quisermos, Madonna a explicar a sua "história" (sem pedir desculpas a ninguém, ao menos isso) com aquela prosápia audiovisual que deflagra como fogo-de-artifício – espectacular, mas tão breve que quando acaba procuramos o que restou e não há vestígios. Nesta confissão de que o caminho da sabedoria passa pela sujidade, em que Madonna utiliza o punk-rocker ucraniano Eugene Hutz como seu alter-ego, ouve-se "Erotica", lembramo-nos das fotografias do livro "Sex", com o cortejo de sadomasoquismo, fetichismo e exibicionismo, e podemos concluir: ah, trata-se de uma mundivisão, o mundo é um bordel! Nada contra, Madonna até costuma (va) ser divertida nas suas patifarias insolentes. "Sujidade e Sabedoria" é, de facto, feito à sua imagem: sem vestígios de relação intrínseca, sensual, com planos, montagem e personagens, coisas propriamente cinematográficas de que não há aqui consciência alguma, porque a "história" de Madonna - a sua sabedoria - é outra, é a dos videoclips e espectáculos. De que "Sujidade e Sabedoria" é um "ersatz".


Jorge Mourinha, in PÚBLICO, 10 de Setembro de 2009
Sujidade e Sabedoria
O caminho da sabedoria passa pelo fetichismo sado-masoquista, como todos sabemos desde que Madonna fez um livro chamado "Sex" ao mesmo tempo que um disco chamado "Erotica". No entanto, o que não sabíamos era que o caminho da sabedoria passa pelo fetichismo sado-masoquista praticado por marcação por Eugene Hutz, o líder da sensação klezmer-trash-punk-Kusturica-balcâs-on-speed Gogol Bordello e novo melhor-amigo-do-momento de La Ciccone, mânfio-gigolo-iluminado que serve de guia à estreia na realização da diva pop. Mas não vale a pena embandeirarmos em arco com o que, na prática, é uma espécie de "filme de fim de curso (sem curso) " cujo único interesse reside na assinatura de quem o dirige e que, sem isso, passaria tão despercebido como as dezenas de outros filmes despejados a trouxe-mouxe nas salas ou lançados sem apelo nem agravo em DVD ao longo de qualquer ano fiscal. "Sujidade e Sabedoria" não é melhor nem pior do que todos esses filmes nem tem ambições a ser uma obra-prima, mas não tem uma história para contar, não tem uma marca de realização, não tem personagens que nos cativem, não tem, em suma, grandes razões para existir. É só Madonna a ver se consegue fazer um filme – e, respondida afirmativamente a pergunta, siga para a próxima aventura.


João Lopes, in Sound + Vision, 10 de Setembro de 2009
Madonna a caminho da virtude
Provavelmente, os franceses têm razão: o primeiro filme de Madonna como cineasta chama-se, no original, Filth and Wisdom, o que deu, entre nós, o literal Sujidade e Sabedoria; mas em França decidiram-se por une petite touche de ironia e identificaram-no como "Obscenidade e Virtude". Na verdade, neste labirinto de contrários, tudo começa pela revelação da obscenidade (= exterioridade, fora de cena) de algumas personagens que tentam salvar a alma, mesmo quando fazem mercadoria do corpo -- veja-se o emblemático vendedor de favores sexuais, exuberantemente interpretado por Eugene Hutz, vocalista dos Gogol Bordello. Tudo isso é território tradicional de Madonna, ou não fosse ela uma artista das margens do seu próprio tempo, perversamente instalada no centro da arena mediática.
A virtude pressente-se na imensa vulnerabilidade de todas as personagens, no modo como, para além da violência do quotidiano, essas personagens se revelam como pequenos animais acossados, plenos de ternura e comoção. Que é como quem diz: Madonna força o mais possível a dicotomia inocência/pecado, aprendida na incontornável herança católica (Like a Virgin é, afinal, o seu hino), e transforma Sujidade e Sabedoria numa aventura filosófica através da universalidade do Mal e da raridade do Bem. Crua pedagogia, ainda que plena de humor. São lições de uma senhora cada vez mais virtuosa.

13 e 14 Novembro - Dois filmes de Manuel Mozos e conversa com o Realizador


2009 tem sido um ano bom para o realizador lisboeta Manuel Mozos: o documentário “Ruínas” foi premiado em festivais portugueses e estrangeiros, o filme “4 Copas” estreou-se no circuito comercial e houve ainda oportunidade para a realização e estreia de um novo documentário sobre a fadista Aldina Duarte (“Aldina Duarte: Princesa Prometida”).
Paralelamente, Manuel Mozos tem sido objecto de várias retrospectivas um pouco por todo o país, o que contribui para se consolidar como um dos nomes mais interessantes do novo cinema português, depois de uma carreira iniciada em 1989.
A convite do Cineclube de Amarante, Manuel Mozos estará este fim-de-semana na cidade para assistir à projecção de dois filmes seus: “4 Copas” e “…Quando Troveja”.
“4 Copas”, que será exibido no dia 13 às 21h30, conta com João Lagarto, Filipe Duarte, Rita Martins e Margarida Marinho nos principais papéis e retrata a história de um estranho triângulo amoroso que se desenrola em Lisboa.
“…Quando Troveja”, um filme de 1999, passa pela segunda vez no ecrã do Cineclube de Amarante. Trata-se de uma história de desencontros amorosos, de contornos sobrenaturais, e que poderá ser vista no dia 14, às 17h00.
No final das sessões o público terá a oportunidade de dialogar com Manuel Mozos e perceber a forma como um realizador vê a criação artística e o cinema em Portugal.



13 Novembro, 21h30 - 4 Copas

Título original: 4 Copas

De: Manuel Mozos

Com: Margarida Marinho, João Lagarto, Rita Martins, Filipe Duarte
Género: Drama
Classificação: M/12
Origem: Portugal
Ano: 2008
Cores, 104 min

Depois de "Xavier" (1992) e "Quando Troveja" (2002) e "Ruínas" (ainda não estreado), Manuel Mozos regressa aos cinemas com esta longa-metragem de ficção, com a cidade de Lisboa como pano de fundo, sobre pessoas comuns que vivem e partilham problemas comuns.
Diana (Rita Martins), a entrar na idade adulta, vive despreocupadamente as suas aventuras amorosas. Mora com o pai (João Lagarto), um homem tranquilo e pouco exigente, e com a madrasta Madalena (Margarida Marinho), uma mulher frustrada e viciada no jogo. Um dia descobre que Madalena trai o seu pai com Miguel (Filipe Duarte), um segurança muito atraente e mais jovem, que dá aulas de escalada nas horas vagas. Com o intuito de salvar o casamento do seu pai, Diana aproxima-se de Miguel. Mas acaba por descobrir o amor...

Luis Miguel Oliveira, in PÚBLICO, 20 de Agosto de 2009
Gostar de personagens

O filme de Manuel Mozos tem a capacidade de se confundir, a cada momento, com um infinito amor pelo seu conjunto de personagens, que é de resto a principal razão da sua existência.
Nem todos os filmes, e na verdade não é assim uma coisa tão comum, estão interessados em gostar das suas personagens. E muito poucos querem, e sabem, mostrar a cada plano o amor que têm pelas suas personagens. A reduzirem-se - tarefa ingrata - as virtudes de "4 Copas" a uma só, essencial, fique-se com essa: a capacidade que o filme tem para se confundir, a cada momento, com um infinito amor pelo seu conjunto de personagens, como se fosse ele a guiá-lo, e declará-lo a principal razão da sua existência. Doce mesmo quando é implacável (o plano em que João Lagarto adormece antes de a mulher, Margarida Marinho, se deitar, e assim com um pacífico ressonar se mostra um casamento em falência técnica), terno mesmo quando é severo (a bofetada de Lagarto na filha, Rita Martins), "4 Copas" é um filme que parece feito para ele próprio, o filme, ficar a ver as suas personagens, ver o que elas fazem e como elas sentem, às vezes envergonhado com as suas falhas de carácter (os planos com Marinho, viciada no jogo, a rebaixar-se para conseguir algum dinheiro emprestado), outras orgulhoso das suas virtudes (a cabeça erguida, o peito cheio de ar, de João Lagarto na cena a seguir ao divórcio), mas sempre devotado. A verdade é que, como ensinou um velho cineasta francês, todos têm as suas razões, e é isso que torna a escolha difícil. Ou impossível: mesmo quando as personagens estão já todas zangadas umas com as outras (as três citadas mais a de Filipe Duarte), e não há um plano que possa conter duas delas ao mesmo tempo, o filme - e é talvez a sequência mais bonita - entra num vai e vem a saltar de umas para as outras, planos curtos sobre planos curtos, quase sem "avançar" coisa nenhuma, como se fosse só para conseguir estar com todas em simultâneo (e também para se descansar, e confirmar que elas são fortes, e se aguentaram durante o tempo em que a câmara as abandonou).
Isto é uma questão de olhar, na verdadeira acepção da palavra, e juntamente com este tipo de dramaturgia sussurrada, num tom menor (como todo o tom menor, uma questão de estilo, e de estilo clássico) que reflecte o esbatimento de uma inquietação numa resignação (redentora ou não), a marca distintiva do cinema de ficção de Manuel Mozos (embora fosse interessante defender que também se encontram estas exactas características num filme como "Ruínas"). "4 Copas" conta uma história "comum" como em "Xavier" ou no malfadado "Um Passo, Outro Passo e Depois...". Talvez não fosse tão "comum" a de "...Quando Troveja" mesmo se "4 Copas" conserva dele alguns ecos muito directos - Diana (Rita Martins), a miúda com nome de deusa da caça que para remendar o casamento do pai se põe a seduzir o homem que lhe seduziu a mulher, é um pouco como os "duendes" que nesse filme cuidavam da vida amorosa de Miguel Guilherme. Tornando-se a força motriz da história (espécie de pequena "metteuse en scène"), é também a personagem mais enigmática - nela coexistem a candura e a perversidade, mas as doses de uma e de outra coisa são cuidadosamente camufladas.
Gostar das personagens também implica respeitar-lhes o mistério. E, inevitavelmente, gostar dos actores. Dos secundários (a florista de Cristina Alfaiate, o "espanhol" de Vítor Correia) ao quarteto de "copas": a adolescente de Rita Martins é impecável, Filipe Duarte dá ao seu segurança de centro comercial o tom devidamente "sacudido" (ora por uma mulher ora por outra), João Lagarto empresta à sua personagem uma irrepreensível dignidade apardalada, e Margarida Marinho tem os modos cansados e vagamente assustados da Eleonora Rossi Drago dos filmes de Zurlini.



14 Novembro, 17h00 - Quando troveja

Título original: Quando troveja

De: Manuel Mozos

Com: Miguel Guilherme, Elsa Valentim, José Wallenstein, Isabel de Castro
Género: Drama
Classificação: M/12
Origem: Portugal
Ano: 1998
Cores, 92 min

A relação de António e Ruth termina inesperadamente. Ruth vai viver com Pedro, o melhor amigo de António. António, desesperado, deixa-se esmagar pelas suas próprias fraquezas. Mas, do bosque, surgem dois estranhos seres, Violeta e Gaspar, que vão interferir na vida de António.

6 Novembro - Isto é Inglaterra


Título original: This is England

De: Shane Meadows

Com: Thomas Turgoose, Stephen Graham, Jo Hartley, Andrew Shim
Género: Drama
Classificação: M/12
Origem: GB
Ano: 2006
Cores, 101 min
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Prémios:
Prémios Bafta: Melhor Filme Britânico; Melhor Filme, Melhor Actor Iniciante (Thomas Turgoose);
Prémio Público Jovem – Festival Gijón;
Prémio Talento Cinema – Festival Londres; Melhor Filme Europeu, Prémio Público Jovem – Festival Mons; Melhor Realizador – Festival Newport...

Inglaterra, 1983. Shaun, 12 anos, é um miúdo problemático, órfão de pai e a viver com a mãe, que é alvo de troça dos colegas. Até que, durante as férias, conhece um grupo de "skinheads" que o acolhe. Com eles vai descobrir as festas, o primeiro amor e as botas Dr Martens. Mas quando um membro do grupo sai da prisão, o tom do grupo muda, e Shaun vai ter de fazer uma escolha difícil, que poderá terminar violentamente a sua infância.


Jorge Mourinha, in PÚBLICO, 16 de Abril de 2009
Pais e Filhos
Já desesperávamos que um dos melhores filmes ingleses dos últimos anos
estreasse em Portugal - e é esta semana que o filme de Shane Meadows sobre
miúdos à procura de um pai cá chega.
Usa-se muito o termo "americana" para descrever os filmes que exploram recantos
ou elementos da cultura (mais ou menos) popular americana. É curioso como ainda
não se encontrou um termo idêntico para Inglaterra, onde, contudo, essa
exploração da cultura popular está tão ou mais enraizada que nos EUA. "Isto é
Inglaterra" assume sem problemas esse lado de "britanniana", num esforço que,
de modo tipicamente inglês, não enjeita a sinceridade da memória mas introduz
um distanciamento crítico, muito pouco sentimental, até um pouco altaneiro.
Porque "Isto é Inglaterra" é um daqueles filmes que não se encaixa numa única
gaveta. É uma história iniciática sobre um adolescente que aprende a ser adulto
durante um Verão específico - mas Shaun, o miúdo de doze anos espantosamente
interpretado pelo estreante Thomas Turgoose, pode ser o único miúdo de doze
anos do filme mas não é o único adolescente da história, nem o único que anda à
procura de um pai.
É um drama social, daqueles que os ingleses sabem fazer como ninguém, mas não
abafa a narrativa nem as personagens em nome do problema que aborda. É um
filme de época, mas não é de época apenas por nostalgia ou facilidade, e usa a sua
época como um modo de falar de coisas universais e intemporais.
Precisamente por isso, acaba por não ser problemático que o filme chegue a
Portugal com dois anos de atraso (rodado em 2006, estreou em Inglaterra há dois
anos e por todo o mundo durante 2007): a sua história de um miúdo à procura de
um pai e, por extensão, de si mesmo continua a ser uma das histórias-chave da
narrativa cinematográfica contemporânea. O que Shane Meadows faz dela e com
ela, contudo, é o que faz do filme uma pequena jóia multi-facetada.
Estamos em Julho de 1983, Shaun acaba de perder o pai na Guerra das Malvinas,
a mãe não tem tempo para lhe dar, os miúdos mais velhos passam o tempo a
meter-se com ele na escola, os únicos que lhe prestam atenção são um grupo de
skinheads locais que o adoptam como "mascote" e dão ao miúdo que se sente
sozinho a sensação de ter encontrado o seu lugar no mundo. A tribo não é política
(há até um negro entre eles): a tribo é social, um modo de abrir espaço para o seu
lugar num mundo cão que não abre espaço para quem não entra na linha. Tudo se
complica para esta meia-dúzia de miúdos porreiros e despreocupados, skinheads
"boa onda" que ouvem soul e ska e seguem os velhos códigos da tribo, quando
Combo, o líder original (uma performance assombrosa que equilibra
vulnerabilidade e agressividade de Stephen Graham), regressa da prisão e começa
a espalhar a ideologia nacionalista e racista que aprendeu lá dentro.
De repente, sem deixar de ser uma história de filhos à procura de pais, de figuras
masculinas que lhes sirvam de modelo, "Isto é Inglaterra" começa a falar de
racismo, de fanatismo, de violência e mostra graficamente a sua origem sem
nunca precisar de carregar a traço grosso, explica a distância que vai da imagem à
verdade, da fachada ao que vai na cabeça. A tribo é um modo de libertar
adrenalina, de deitar cá para fora a energia contida e reprimida de gente que ainda
está à procura da sua identidade e que não tem plena consciência do que está a
fazer nem dos sacos de gatos que está a abrir.
De repente, Meadows, que não convencera ainda com nenhuma das suas quatro
anteriores longas (distribuídas irregularmente por cá), arranca de uma história
simples que podia cair na boa intenção convencional da "problem picture" e do
melodrama social um filme notável. Que ressoa com a história recente inglesa,
reflecte todo o eterno existencialismo adolescente à procura do seu lugar no
mundo e o liga a questões muito maiores, fala por portas travessas do mundo de
hoje falando do mundo de há 25 anos. Sem nunca perder de vista que é a história
de um miúdo de doze anos que perdeu o pai na guerra.
Num momento em que tão pouca coisa de interesse está a estrear em Portugal,
deixar passar ao lado um filme em estado de graça como "Isto é Inglaterra" é
criminoso.


João Lopes, in Diário de Notícias, 19 de Abril de 2009
O cinema britânico e o seu realismo
Chegou esta semana às salas portuguesas Isto É Inglaterra, de Shane Meadows,
desde já um dos filmes maiores do nosso ano cinematográfico (a respectiva
produção é de 2006, mas a estreia no Reino Unido apenas ocorreu em 2008). No
seu centro estão as memórias do ano de 1983, com Margaret Thatcher no poder, o
envolvimento militar nas Malvinas e, nas ruas, uma presença crescente da
extrema-direita. O filme, enraizado em algumas componentes autobiográficas,
centra-se na personagem de Shaun (notável composição de Thomas Turgoose),
um rapaz de 12 anos marcado pela morte do pai, precisamente nos combates das
Malvinas, e que acaba por ser “adoptado” por um grupo de skinheads.
Shane Meadows, também autor do argumento, propõe uma narrativa que
conserva as virtudes essenciais do realismo do cinema britânico. Desde logo, uma
metódica atenção à conjuntura social e política, às suas convulsões e às ideias que
circulam através dos mais pequenos acontecimentos do quotidiano. Depois, uma
obsessiva paixão pela complexidade psicológica das personagens: a par de Shaun,
o líder dos skinheads, Combo (Stephen Graham), com o seu misto de paixão pela
Inglaterra e intolerância pelos “estranhos”, é uma figura de impressionantes
contrastes, com raízes visceralmente trágicas. Enfim, Isto É Inglaterra reflecte uma
dinâmica cultural que está longe de ser meramente cinematográfica, no sentido em
que se apropria de modelos narrativos com raízes noutros domínios, a começar
pela tragédia “shakespeareana”: este é, afinal, um grandioso filme sobre o amor e
a morte, a violência e o ódio.
Mais do que nunca, importa perguntar de onde vem (ou como se sustenta) esta
vitalidade de uma tradição realista que, em boa verdade, se mantém viva e activa
desde o trabalho pioneiro de John Grierson, na década de 30. A primeira resposta
a tal interrogação envolve tanto a postura social do cinema como a sua estética.
Este é um modo de filmar que não se satisfaz com nenhuma forma simplista de
“verismo”. Não basta, de facto, pôr os actores a falar com a linguagem da “época”
ou vesti-los com peças de um guarda-roupa “natural”. O realismo não é uma arte
da “imitação”, mas sim um esforço sistemático, moralmente muito exigente, de
compreensão das componentes de um determinado momento histórico: o trabalho
realista não se fixa no imediatismo do pitoresco, procurando antes situar as suas
personagens num labirinto de dados em que, desde as decisões da cena política
até ao intimismo das práticas sexuais, tudo pode ser revelador e pertinente.
Para além do labor específico dos que fazem os filmes, há uma segunda resposta à
interrogação formulada. É uma resposta que passa, neces-sariamente, pelas
políticas para o audiovisual. E um ponto fundamental dessas políticas é a
permanente articulação entre produção cinema-tográfica e produção televisiva
(articulação, entenda-se, que não tem nada a ver com a injecção de telefilmes e
novelas no espaço do cinema). Isto É Inglaterra foi produzido pelo Film 4, empresa
do Channel 4. Ao longo dos anos, o Film 4 esteve ligado a títulos tão diversos como
A Minha Bela Lavandaria (1985), Quatro Casamentos e um Funeral (1994), e
Trainspotting (1996). O que significa que a televisão é, aqui, uma coisa demasiado
séria para ser entregue à mediocridade populista.