12 Março - Julie e Júlia


Título original: Julie & Julia

De: Nora Ephron

Com: Meryl Streep, Amy Adams, Stanley Tucci
Género: Biografia, Comédia Romântica
Classificação: M/12
Origem: EUA
Ano: 2009
Cores, 123 min
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Nos finais dos anos 40, Julia Child (Meryl Streep) acompanha o marido a Paris, onde ele foi nomeado adido cultural dos EUA. A sua paixão pela cultura francesa culmina com a edição de um livro de gastronomia chamado "Mastering the Art of French Cooking", que se torna um fenómeno de popularidade no seu país, alterando para sempre a culinária americana.
Décadas mais tarde, em Nova Iorque, Julie Powell (Amy Adams) está em crise: aos 30 anos, sente que não alcançou nenhum dos supostos patamares de realização e que não consegue dar um rumo à sua vida medíocre. Um dia, em casa da sua mãe, depara-se com o famoso livro de Julia Child e, com o total apoio do marido, decide iniciar o projecto Julie/Julia: num ano, vai testar as 524 receitas e publicar o resultado num blogue que se revela um sucesso colossal.
Inspirado no livro autobiográfico de Julie Powell, sobre duas mulheres que, embora separadas no tempo, encontraram na arte culinária uma forma de dar sentido às suas vidas.


Jorge Mourinha in PÚBLICO, 19 de Novembro de 2009
O girl power do fogão
A cozinha como fonte da realização pessoal da mulher moderna - numa alta comédia transportada por duas actrizes de eleição.
Como se não chegasse uma, "Julie e Julia" baseia-se em duas histórias verídicas e, sabendo nós como Hollywood adora histórias verídicas (que muitas vezes deixam de o ser assim que chegam ao écrã...), isso deixa logo a pulga atrás da orelha. Uma é a história de Julia Child, espécie de Maria de Lourdes Modesto que revelou à América, nas décadas de 1950 e 1960, a riqueza da cozinha francesa pela qual se apaixonara em Paris após a II Guerra. A outra é a história de Julie Powell, uma trintona nova-iorquina que, em 2002, frustrada com o modo como a sua vida não seguira o curso que ela esperava, embarca no projecto meio insane de cozinhar, ao longo de um ano, as 500 receitas que Child incluira no seu livro de culinária francesa.
Improvavelmente, do cruzamento entre as duas histórias Nora Ephron (a escritora que reinventou a comédia romântica para os anos 1990 como argumentista de "Um Amor Inevitável", 1989, e autora de "Sintonia do Amor", 1993, e "Você Tem uma Mensagem", 1998) tira uma elegantíssima alta comédia sobre duas mulheres que nunca se conheceram nem nunca se cruzaram mas que se encontraram a si próprias do mesmo modo - através da culinária. O truque (e é mais engenhoso do que parece) é o de usar precisamente a divisão da casa à qual as mulheres foram relegadas durante anos como base do seu triunfo e da sua realização pessoal - de "escrava do fogão" a "girl power" através do poder da manteiga e do refogado. Melhor ainda: não estamos a falar de mulheres desfavorecidas (Child era casada com um diplomata, Powell tinha uma vida de classe média, ambas estão perdidamente apaixonadas pelos maridos) e isso é também refrescante - sobretudo porque o objectivo de Child ao escrever o seu livro era o de provar que o requinte da boa comida estava ao alcance da dona de casa média, e o filme explora sabiamente essa "normalidade" tantas vezes maltratada pelo cinema como banal e desinteressante. Como quem diz: sim, as pessoas normais não têm nada de excepcional, e qual é o problema?
"Julie e Julia" torna-se, assim, numa deliciosa subversão dos cânones feministas ao usar, com clássica e discreta elegância, a cozinha como fonte da realização pessoal da mulher moderna (tanto Julia como Julie encontram na partilha das suas descobertas culinárias aquilo que lhes falta para se sentirem completas, mesmo que isso implique ter de assassinar lagostas a sangue-frio), mas sem reduzir as personagens a meras fachadas que apenas existem para a cozinha. É óbvio que ajuda, e muito, ter duas actrizes do calibre de Amy Adams e, sobretudo, Meryl Streep, a quem a comédia está a ficar cada vez melhor (a sua Julia Child é uma criação portentosa para juntar à lista) - e também é verdade que ninguém pensaria em considerar "Julie e Julia" uma obra-prima (para isso, seria preciso mais de substância, até porque há momentos em que o paralelo Julie/Julia a 50 anos de distância é forçado). Mas é tão raro ver uma boa alta comédia hoje, ainda por cima divertida, inteligente, impecavelmente interpretada, que esta quase faz figura de obra-prima. E acabamos por nos esquecer que, em vez de uma, o filme de Nora Ephron se baseia em duas histórias verídicas...


Crónica de Inês Pedrosa

5 Março - O Delator!


Título original: The Informant!

De: Steven Soderbergh

Com: Matt Damon, Lucas McHugh Carroll, Eddie Jemison, Melanie Lynskey
Género: Acção, Comédia
Classificação: M/12
Origem: EUA
Ano: 2009
Cores, 108 min
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Mark Whitacre (Matt Damon) é um empregado do quadro superior na Archer Daniels Midland (ADM), uma empresa da indústria agro-alimentar de grande relevo na economia americana. Convencido que se tornará num herói de uma nobre causa, decide denunciar as práticas ilegais do negócio. Para reunir as provas necessárias, concorda em trabalhar como informador para o FBI e levar um gravador escondido para as reuniões mais importantes.
Mas o comportamento ambíguo de Whitacre torna as coisas cada vez mais complicadas, levando toda a equipa do FBI a tentar decifrar o que é verdade e o que não passa de invenções da sua mente desorganizada.
Uma comédia realizada por Steven Soderbergh, baseada num escândalo que rebentou nos EUA, em 1993, e que deu origem ao romance de Kurt Eichenwald: "The Informant: A True Story".


Vasco Câmara in PÚBLICO, 28 de Outubro de 2009
O Delator!
A leitura de "O Delator" - história, verídica, de Mark Whitacre, bioquímico de uma multinacional que nos anos 90 colaborou com o FBI na denúncia de práticas fraudulentas da sua empresa - como um filme da crise, como filme sobre o fim de um sistema tal como o conhecíamos, foi proposta a Soderbergh (no Festival de Veneza). Que não se riu, mas chamou a atenção deste facto: o projecto é de 2001. Portanto, assumiu, a conexão é acidental, por mais benéfico que seja para o filme dar-se a ver como espelho da doença que alastrou pela "corporate America". Vê-se pelo genérico luxuriante - o tom 70s na banda sonora é da autoria de Marvin Hamlisch - que Soderbergh está em modo de reescrita, e mais interessado nos exercícios de uma personagem, alguém que, veio a descobrir-se, se construiu a si próprio como ficção, envolvendo a sua vida em mentiras, ele próprio agente activo de práticas de fraude.
Whitacre (Matt Damon) era um maníaco-depressivo e Whitacre/Damon é um negativo nada glamouroso dos patifes que povoam muito cinema americano e o cinema do Soderbergh da série Ocean''s. É uma comédia negra fantasista (ao contrário do que aconteceu em "Erin Brokovich", Soderbergh não quis fazer pesquisa junto de quem conheceu uma personagem real...), é um daqueles exercícios "menores" mas enérgicos deste realizador "de segunda" - não é juízo de valor, é a forma como Soderbergh se coloca perante quem chegou antes dele. Note-se o duelo entre imagem e som, a sabotagem permanente, que nos vai dando indícios do mal-estar de uma personagem - agora acrescentamos: e de uma época.


Jorge Mourinha in PÚBLICO, 21 de Outubro de 2009
Contado ninguém acredita
Steven Soderbergh transforma a história verídica de um informador infiltrado numa comédia escarninha sobre a verdade e a mentira.
Graças a Deus que existe Steven Soderbergh para provar que é possível continuar a fazer cinema "desformatado", pessoal, subversivo, invulgar, diferente dentro de uma Hollywood cada vez mais formatada e formulaica.
Depois do díptico dedicado a Che Guevara e de "The Girlfriend Experience" (fita independente com a actriz porno Sasha Gray que ainda não viu estreia entre nós), o autor de "Erin Brockovich", dos três "Ocean's Eleven" e de "O Bom Alemão", assina mais um objecto não identificável, subvencionado pela "major" Warner e com um actor de primeiro plano (Matt Damon, com dez quilos a mais e a confirmar como pode ser grande quando lhe pedem para representar).
Da história verídica de um executivo agroquímico que se ofereceu ao FBI em 1992 como informador infiltrado numa multinacional dos aditivos, que podia ser mais um desses thrillers legais que Hollywood adora fazer à medida das suas estrelas, Soderbergh tira uma surpreendente comédia trágica sobre um mitómano compulsivo, onde nada é o que parece e tudo é filmado com os tiques formais dos dramas políticos e das séries policiais televisivas dos anos 1970. O realizador encena os trabalhos de Mark Whitacre como uma meditação escarninha sobre a verdade e a mentira e sobre o modo como a nossa percepção dos conceitos pode ser manipulada quase sem darmos por isso - meditação que Soderbergh se delicia a filmar como uma demonstração prática dessa teoria.
Inversão sardónica de e homenagem respeitosa a filmes como "Os Homens do Presidente", revista e corrigida pelos truques conceptuais que Soderbergh vai buscar ao Godard clássico e ao non-sense britânico dos "swinging Sixties" (nunca esquecer que o cineasta é um ferrenho de Richard Lester, o homem que primeiro e melhor filmou os Beatles), "O Delator" é mais um dos objectos inclassificáveis disfarçados de filme "mainstream" que o realizador adora atirar para a modorra criativa dos estúdios. Não é uma obra-prima - há momentos em que tudo se resume em demasiado a uma experiência formal (e todos sabemos como o autor de "Sexo, Mentiras e Video" se deixa levar facilmente pelo formalismo), e fica sempre a sensação que Soderbergh está mais interessado no modo como conta a história do que na história que está a contar. Mas nem todos os filmes têm que ser obras-primas - basta apenas que sejam estimulantes. E, nisso, "O Delator" confirma a cem por cento que está aqui o realizador mais vital a trabalhar hoje em Hollywood...