23 Outubro - Inimigos Públicos


Título original: Public enemies

De: Michael Mann

Com: Johnny Depp, Billy Crudup, Marion Cotillard, Christian Bale
Género: Acção, Drama
Classificação: M/16
Origem: EUA
Ano: 2009
Cores, 141 min
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Durante os anos da Grande Depressão, existia em toda a população americana, uma revolta generalizada contra os bancos por serem a causa da crise resultante da quebra da Bolsa de Nova Iorque, em 1929. Apareceu então um grupo de gangsters, liderado por John Dillinger (Johnny Depp). Dillinger rapidamente conquistou a simpatia do público, tanto pelos seus assaltos a bancos como pelas épicas evasões da prisão, sendo considerado uma espécie de Robin dos Bosques da era moderna.
Depois de várias tentativas do Governo americano para o deter, J. Edgar Hoover (Billy Crudup), chefe do departamento do FBI que mais tarde se viria a tornar uma das maiores organizações de investigação do mundo, atribui a Dillinger a designação de Inimigo Público Número Um, atribuindo a Melvin Purvis (Christian Bale) a árdua tarefa de o deter. A perseguição, com vários sucessos e fracassos, terminaria com a morte de Dillinger, em 1934. Michael Mann ("Heat - Cidade Sob Pressão", "Miami Vice", "Colateral") foi buscar inspiração ao livro do historiador e jornalista Bryan Burrough: "America's Greatest Crime Wave and the Birth of the FBI".
Fica a curiosidade: Johnny Depp e restante elenco usam chapéus feitos com feltro da fábrica Fepsa, de São João da Madeira.

Luís Miguel Oliveira, in PÚBLICO, 5 de Agosto de 2009
História de um ladrão analógico
"Inimigos Públicos" filma John Dillinger como último representante de um tempo, prestes a acabar perante os indícios de uma nova era. Michael Mann é um dos casos interessantes da cinefilia contemporânea. Por várias razões, esta por exemplo: está por provar cabalmente que o Mann de "Miami Vice" (um dos melhores filmes americanos desta década), o destes "Inimigos Públicos", e vá lá, o de "Colateral", seja o mesmo Mann do "Último dos Moicanos", de "Heat" ou "Ali".
Fugiria demasiado ao assunto deste texto ilustrar melhor esta dúvida, mas resumiríamos assim: se Mann, ao longo da sua obra, pareceu sempre alguém interessado em elaborar a partir das formas e figuras tradicionais da narração
cinematográfica clássica, um "cineasta da mise-en-scène" quase (quase) no sentido "Mac-mahoniano" do termo, nunca o fez de maneira tão entusiasmante nem tão bem sucedida como a partir do momento em que passou a utilizar as pequenas câmaras digitais que foram o instrumento de trabalho dos seus últimos três filmes. Este facto, por si mesmo, constitui uma "questão interessante" para a cinefilia contemporânea; mas há ainda outro aspecto que vale a pena notar: interessado nos modos da narração mais do que na coisa narrada, Mann é muito capaz de ser o último formalista (no sentido estrito e historicamente legitimado do termo, como é óbvio) do cinema americano. Não espanta que a sua obra-prima seja "Miami Vice", filme sem "tema", filme quase sem "história" - do que nos lembramos é da luz, dos tempos e dos movimentos, da relação entre os corpos dos actores e o cenário.
A luz, os tempos e os movimentos, a relação entre os corpos dos actores e o cenário: felizmente, apesar de ter mais "tema" e mais "história" (a saga de John Dillinger e a caça que o então incipiente FBI lhe moveu), "Inimigos Públicos" também nos deixa ver e pensar nessas coisas. Menos pictórico e ambiental do que "Miami Vice", mais consistentemente centrado numa narrativa, é verdade que sentimos a falta daqueles momentos do filme de Miami em que tudo se parecia suspender, tornar abstracto, não dependente de factos narrativos - mesmo que nalgum grau isso não deixe de
acontecer em "Inimigos Públicos", por exemplo em muitas das cenas entre Dillinger (Depp) e a namorada (Marion Cotillard), embebidas por um desejo difuso (diríamos um "longing", passe o inglês) de existirem para lá da narrativa como facto. Por outro lado, é claro que o essencial da história está na impossibilidade de Dillinger fugir à sua narrativa, que obviamente é o que permite a Mann filmá-los (à personagem e à narrativa) com um sentido trágico quase elegíaco, bem distinto do tratamento de John Milius no seu "Dillinger" dos anos 70.
Ao mesmo tempo, "Inimigos Públicos" não deixa de ser um regresso à acção, com menos matizes e cambiantes do que "Miami Vice". É em muitas destas cenas que se torna extraordinário o trabalho de câmara, sempre em flutuação, como que acompanhando as cenas, testemunhando-as, impondo-lhes uma respiração e uma espécie de um desfasamento (razão pela qual frequentemente parece haver um ralenti que de facto não existe) particularmente fascinantes. Como se a câmara, mobilíssima, encontrasse a sua própria coreografia, desenhasse os seus arcos entre os actores e o espaço, dentro da coreografia geral da cena. Liquidez e solidez: a câmara mergulha dentro desta imagem digital muito aquosa, mas fá-lo para dar conta da solidez da "mise-en-scène", para testemunhar a sua dureza e o seu rigor, para
criar um ponto de vista sobre a sobre a "mise-en-scène" que nunca se confunde com ela, mas também nunca se torna numa distância "inorgânica". É raro, e é talvez o ponto onde Mann é mais "vanguardista".
Este tratamento moderno de uma personagem e de uma época (os anos 30) clássicas tem, curiosamente, alguns ecos dentro da própria narrativa. Dillinger é o tipo de ladrão romântico e "popular" (durante a Depressão assaltar bancos colhia alguma empatia junto do povo, "honni soit qui mal y pense"), arcaico e "analógico", totalmente impossível nos dias de hoje - onde as escolhas se limitam à criminalidade "abstracta" dos "hackers" ou dos Madoffs. "Inimigos Públicos" filma Dillinger como último representante de um tempo, prestes a acabar perante os indícios de uma nova
era. É toda a intriga paralela com Edgar Hoover (Billy Crudup) e a constituição do FBI como instituição "moderna" - o princípio da aposta tecnológica, a criação de um sistema "big brother" capaz de esquadrinhar o espaço e tornar a vida quase impossível aos criminosos "físicos". Este progressivo acossamento é a história de Dillinger tal como o filme a conta, tornada símbolo da diferença entre dois mundos ou entre dois tempos. Não por acaso - ou por acaso histórico prenhe de conotações - tudo acaba numa sala de cinema. Os campos/contracampos entre Dillinger e Clark Gable (o filme que ele foi ver era "Manhattan Melodrama") têm esta ironia: estabelecem uma fronteira intransponível ("folk hero", Dillinger comportava-se como personagem de cinema mas nunca poderia ser tão intocável e inacessível como uma personagem de cinema) no mesmo passo em que lhe definem a aura e a lenda. A seguir pode vir o epílogo - Dillinger deixou-as, à aura e à lenda, no ecrã do cinema. Este filme, entre outros, é a prova disso.

João Lopes, in Diário de Notícias, 6 de Agosto de 2009
Um cineasta formado na televisão
Por vezes, há qualquer coisa de desconcertante no modo como a fama de algumas personalidades do mundo do cinema acaba por favorecer o desconhecimento da sua própria versatilidade. Assim acontece com Michael Mann (nascido em Chigado, em 1943), cineasta consagrado por vários títulos ligados à tradição do policial, em especial a partir do sucesso internacional de Heat/Cidade sob Pressão (1995), com Al Pacino e Robert de Niro. De facto, Mann foi o primeiro cineasta a filmar a personagem de Hannibal Lecter (consagrada em 1991 através da interpretação de Anthony Hopkins em O Silêncio dos Inocentes, de Jonathan Demme). Aconteceu em 1986, com a adaptação de Dragão Vermelho, primeiro romance da trilogia de Thomas Harris sobre Lecter. Era o actor escocês Brian Cox que interpretava a personagem de Lecter (ainda designado por “Lecktor”), chamando-se o filme Manhunter (entre nós lançado como Caçada ao Amanhecer).
De invulgar subtileza dramática, Manhunter é, hoje em dia, um thriller muito pouco visto, apesar de claramente superior à versão de 2002 do mesmo Dragão Vermelho, dirigida por Brett Ratner. Mas não é essa a única referência esquecida da carreira de Mann. Em 1979, ele dirigiu um telefilme, The Jericho Mile, centrado na história insólita de um condenado a prisão perpétua (Peter Strauss) que mantém um regime obsessivo de treino de corrida, a ponto de se colocar a hipótese de o enviar aos Jogos Olímpicos: o impacto emocional e o sentido espectacular de The Jericho Mile acabaram por valer-lhe a difusão nas salas de cinema de muitos países (em Portugal, estreou-se como Fúria de Vencer).
Aliás, a experiência de Mann no mundo da televisão está longe de ser indiferente para o desenvolvimento do seu trabalho. Aí, ele integrou um sentido prático da rodagem que lhe permite, mesmo quando trabalha com as sofisticadas câmaras digitais da actualidade, manter uma grande espontaneidade e uma permanente capacidade de adaptação aos problemas gerados pela utilização de cenários naturais. Isso está bem expresso na sua “trilogia digital”: Colateral (2004), Miami Vice (2006) e, agora, Inimigos Públicos. Por um lado, são filmes eminentemente experimentais, capazes de tirar o máximo partido de máquinas que estão a alterar de modo significativo as condições de rodagem, em particular no aproveitamento das fontes naturais de luz; por outro lado, isso não impede Mann de ser um cineasta capaz de revalorizar os valores mais tradicionais de Hollywood, a começar pelo elaborado trabalho com os actores.


Johnny Depp a caminho do Oscar?'
Já próximo do final de Inimigos Públicos, quando se começa a apertar a teia policial em torno de John Dillinger (Johnny Depp), há uma cena incrível: nela vemos, em pose casual de óculos escuros, o próprio Dillinger entrar no quartel-general da polícia, quase deserto (em boa verdade, estão a tentar encontrá-lo noutro local). Não se trata
de uma acção premeditada, nem se transforma num qualquer efeito de surpresa. O que lhe confere uma indescritível estranheza é o facto de Dillinger, com evidente curiosidade, observar os artefactos de trabalho dos polícias e, em particular, nos painéis nas paredes, as muitas fotografias em que ele próprio é figura de destaque.
Do ponto vista simbólico, reforça uma componente essencial da personagem, afinal coabitando com os mecanismos da sua própria lenda no imaginário social. Em termos narrativos, é uma cena que, por si só, define um espantoso cineasta: não se trata de fazer “avançar” a acção através de uma mera acumulação de informações, mas sim de reforçar um jogo de intensidades paradoxais que, em última instância, remete para a vida interior do próprio Dillinger.
Por aí podemos definir a singularidade do trabalho de Michael Mann. Ao reinvestir a personagem de Dillinger, é óbvio que Mann está consciente da riqueza estética da tradição do filme de gangsters, desde os tempos gloriosos do primeiro Scarface (1932 - cartaz) até às experiências modernas de Martin Scorsese. Ao mesmo tempo, não há nele nenhum revivalismo saudosista, nenhuma prática simplista da “citação”. E é, de facto, admirável que a tensão física que comanda as acções de Inimigos Públicos nunca exclua um sentido eminentemente psicológico de caracterização das
personagens. Paradoxo suplementar: num cinema cada vez mais devedor da sofisticação das câmaras digitais, o que Inimigos Públicos celebra é o valor primitivo do actor como aquele através do qual passam todas as linhas de força da narrativa. Será preciso acrescentar que Johnny Depp deverá ter, no mínimo, uma nomeação
para o Oscar?

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