8 Maio 2009 - Milk


Título original: Milk
De: Gus Van Sant
Com: Sean Penn, Emile Hirsch, Josh Brolin
Género: Drama
Classificacao: M/16
Origem: EUA
Ano: 2008
Cores, 128 min
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Vasco Câmara in PÚBLICO, 30 de Janeiro Gus Van Sant leva-nos até "somewhere over the rainbow". O crítico Nathan Lee, na revista "Film Comment", lançou uma "boutade" que pegou: escreveu que "Milk" é "o mais ''straight''" dos filmes de Gus Van Sant - um cineasta homossexual. Quis ele dizer que o filme sobre o autarca da câmara de São Francisco, homossexual (o primeiro político assumidamente gay a ser eleito para um cargo público nos EUA, estávamos nos anos 70), que ajudou a fazer de São Francisco um viveiro para as aspirações de uma comunidade e que hoje é ícone da militância gay, era um filme... convencional. Isso, "straight", um filme biográfico, um "biopic", com voz "off" e tudo. A "boutade" é irresistível. Mas gostaríamos de perceber o que é que tem de convencional contar uma história destas como quem conta a história de uma rua - a Castro Street, onde Milk chegou, viu e venceu (até ser morto por um colega de câmara, Dan White, em 1978) - como se essa rua fosse a rua daqueles filmes que a desaparecida Hollywood inventava para serem exaltadas as qualidades americanas. É isso mesmo: com uma história da História gay Gus Van Sant faz "americana", esse género tradicional, que era muito sobre o "centro" das coisas e sem permitir "desvios", que o cinema clássico americano cultivou no passado. Podemos dizer, aliás, do razoavelmente burlesco Milk, personagem em que Sean Penn miraculosamente desaparece: Mr. Milk goes do Castro, isto é, à Câmara de São Francisco, como Frank Capra pôs James Stewart, Mr. Smith, a ir a Washington, isto é, a pedir a palavra. Isto de ser aparentemente convencional, não tem nada de convencional. Portanto: é toda a América numa rua - e uma rua gay. ("Milk" é mesmo um filme político.) E essa forma de passar da história individual à história de muitas pessoas gay e, mais um passo em frente, à história de todas as pessoas, gay ou não, esse salto da rua ao país (e da América a todos nós), faz com que se sinta em "Milk" a vibração de uma epopeia humana. Concedendo que, depois de "Sunset Boulevard" (1950), um filme narrado por um morto não é proeza - o "testamento" que Milk deixou, para o caso de ser assassinado, coisa que previa que lhe iria acontecer, é a voz que nos acompanha em "Milk" -, já é assinalável, e é a pedra de toque deste filme comoventíssimo, o resultado da utilização das imagens de arquivo. Com elas, e com aquilo que Van Sant aprendeu nos seus filmes mais experimentais, como "Gerry" (2002), "Elephant" (2003) ou "Last Days" (2005) - de que "Milk" está próximo, mais do que de filmes, esses sim, convencionais como "O Bom Rebelde" (1997) ou "Finding Forrester" (2000) -, o realizador arrebata-nos. Leva-nos para um mundo imaginário, onírico, "somewhere over the rainbow". De um só fôlego, torna-se o criador de uma fábula - daquelas que falam de nós com uma luminosidade portentosa -, um prestidigitador da iconografia gay (o "Somewhere over the Rainbow" de Judy Garland é despojado e entregue à sua mais desesperada fantasia), um cronista de um período da História americana e de uma cidade. Desaparecida, que não volta mais (será que existiu ou foi mistificação da memória?). Milk morreu, depois veio a Sida, e o sexo e os anos 70 ficaram retidos no domínio da fantasia mais nostálgica, sobrando um extremado sentimento de perda. Por falar dos mortos: das coisas mais espantosas de "Milk" é a sensação de que estamos a ser olhados, interpelados, por quem já aqui passou, por quem já é História e deixou legado. "Milk" fala connosco, hoje. Da Proposta 6, que nos anos 70 quis impedir os homossexuais de serem professores (Milk ajudou a derrotar essa proposta legislativa), à Proposta 8, que hoje, na mesma Califórnia, negou a possibilidade de casamento de pessoas do mesmo sexo...? Sim, disso também, mas muito mais do que isso, o olhar é abrangente, é para a América inteira, é para os que se sentem excluídos. "Milk", pedaço de fantasmagoria que, afinal, deixa em aberto uma hipótese de renascimento, é um filme para todos. "É preciso dar-lhes esperança", dizia Harvey Milk. Tem-se dito que é o primeiro fantasma de Barack Obama a aparecer no cinema americano. Numa entrevista à revista "Attitude", Gus Van Sant concedia que sim. E ainda alguém consegue dizer que é um filme "convencional"?

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