30 Abril - Ágora


Título original: Agora

De: Alejandro Amenábar

Com: Rachel Weisz, Max Minghella, Oscar Isaac
Género: Drama
Classificação: M/12
Origem: Espanha
Ano: 2009
Cores, 126 min

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Egipto, ano 391. Alexandria é parte do império Romano e o Cristianismo torna-se a religião dominante. Quando as revoltas populares chegam à Biblioteca de Alexandria, Hipátia (Rachel Weisz), filósofa e ateísta, luta pela preservação da cultura do Mundo Antigo sem se aperceber que o seu jovem escravo, Davus (Max Minghella), está apaixonado por si. Mas o jovem fica dividido entre o seu amor secreto e a promessa de liberdade em troca da sua aliança aos cristãos.
Um épico sobre o Cristianismo e as suas injustiças, realizado por Alejandro Amenábar ("Os Outros", "Mar Adentro" e "Abre Los Ojos").


Jorge Mourinha in PÚBLICO, 10 de Dezembro de 2009
Ensaio sobre a cegueira
Parece ser um épico histórico quase romântico mas é um ensaio ardiloso sobre a ignorância e o conhecimento
Ao princípio, pensamos ter aterrado numa reinvenção do "peplum"; não, afinal desviamo-nos para os épicos cristãos de bons sentimentos à la "Túnica" e outros "Quo Vadis"; quando damos por nós, entrámos numa história de amor impossível e acabamos numa crítica feroz dos fundamentalismos religiosos, num hino à tolerância e à razão, num ensaio sobre a ignorância e o conhecimento. E o melhor de tudo é que só no final das duas horas de projecção é que temos o quadro todo à frente - explica-se porque é que filmes como "Ágora" não se encontram ali à esquina nem enquanto o diabo esfrega o olho, filmes que resistem teimosamente a explicar ao que vêm nos primeiros dez minutos e que se vão revelando aos poucos, como quem não quer a coisa. Calha bem, a figura central do filme de Alejandro Amenábar (cinco anos depois de "Mar Adentro") é a elipse - a elipse que define a órbita da Terra em volta do Sol que a filósofa Hipátia busca durante todo o filme, numa sede insaciável de conhecimento, mas que está lá desde o primeiro diálogo com os alunos na sua sala de aulas na biblioteca de Alexandria, onde se fala dos temas que norteiam "Ágora" sem realmente falar deles.
Estamos em 391 depois de Cristo, quando o cristianismo se começa a espalhar pela Europa, e Amenábar centra a história no saque da lendária biblioteca de Alexandria e na imparável ascensão ao poder dos cristãos do Médio-Oriente, impondo um intolerante "diktat" que nos faz pensar ora nos talibãs (e outros fundamentalistas religiosos, quaisquer que sejam) ora no Nazismo (e outras crenças de extrema-direita, quaisquer que sejam). Não é por acaso que Amenábar ilustra graficamente o apedrejamento da população judia de Alexandria nem é forçosamente casual que identifiquemos o saque e destruição da biblioteca com a destruição dos budas de Bamyan, no Afeganistão - e é um tanto ou quanto perturbante para aqueles que esqueceram a sua história clássica perceber que já na Antiguidade a intolerância e o preconceito existiam e procuravam derrotar as forças da razão e do conhecimento.
Mas tudo isto é contado através de um improvável triângulo romântico: Hipátia, a filósofa e cientista que abdicou da sua vida e das suas emoções em nome da ciência; Davus, o escravo fascinado pelo conhecimento que, uma vez libertado num novo mundo onde a ciência já não tem o mesmo lugar, se dedica à violência em nome da religião para preencher o vazio; Orestes, o romântico incurável que sempre procurou o compromisso impossível entre a ciência e a religião. E de repente percebemos que, por trás destes amores nunca consumados encontra-se um filme muito mais ardiloso do que parece, que usa a estrutura e a forma do género para criar um épico onde a cabeça e não a acção comanda, e, ao mesmo tempo, para criticar a sua própria estrutura. Um filme sobre a força e o poder e o perigo das ideias, mas sobre o perigo ainda maior de não deixar essas ideias contaminarem-se pela emoção e pela compaixão. Um filme que debate religião, ciência, conhecimento, intolerância pelo meio de uma abordagem clássica ao cinema de género e de grande espectáculo, que Amenábar encena com segurança e uma inteligência que já lhe conhecíamos dos filmes anteriores mas que atinge aqui uma maturidade insuspeita - mesmo que também aqui com uma frieza algo distante, ali com um peso demasiado demonstrativo, pontualmente mesmo com um certo anonimato de funcionário.
A maior fraqueza de "Ágora", aliás, acaba por ser, paradoxalmente, a sua força - o modo como a história parece navegar à vista sem destino nem forma durante a primeira metade do filme sugerem primeiro um cineasta à toa, perdido na sua ambição, mas revelam-se depois uma estratégia delineada que exige uma entrega e uma atenção inabituais nestes dias em que a oferta é descartável e pouco exigente: este é um filme que trata o seu espectador como alguém que pensa. É uma ambição que se saúda, reconhece e se agradece, mesmo que "Ágora" fique um par de furos aquém da obra-prima.

23 Abril - Nas Nuvens


Título original: Up in the Air

De: Jason Reitman

Com: George Clooney, Vera Farmiga, Anna Kendrick
Género: Comédia, Drama
Classificação: M/12
Origem: EUA
Ano: 2009
Cores, 110 min


Ryan Bingham (George Clooney) é um quarentão empedernido, misantropo e com fobia ao compromisso. A sua especialidade é despedir pessoas, reformulando as necessidades empresariais com vista à maximização de recursos. Por isso, está sempre a viajar em trabalho (com uma bagagem minimalista que leva para todo o lado), facto que aproveita para saciar a sua compulsão em coleccionar milhas aéreas. Porém, quando está prestes a atingir o objectivo das dez milhões de milhas como cliente regular, o patrão decide aplicar a Ryan o seu próprio conceito de maximização de recursos e mudar o método de trabalho, fazendo-o cumprir as suas funções através de vídeo-conferência.
A ideia de estar confinado a um escritório seria a mais aterradora de toda a sua carreira, não fosse algo ter mudado: Ryan acabou de conhecer Alex Goran (Vera Farmiga) e agora a perspectiva de assentar e começar uma família parece muito menos assustadora.
Baseado no romance homónimo de Walter Kirn, é a terceira longa-metragem de Jason Reitman, depois de "Obrigado por Fumar" (2005) e "Juno" (2008), foi nomeado para seis das principais categorias dos Globos de Ouro: melhores filme dramático, realizador, argumento, actor dramático (Clooney) e duas nomeações na categoria de melhor actriz secundária (Vera Farmiga e Anna Kendrick).


Jorge Mourinha in PÚBLICO, 21 de Janeiro de 2010
Primeira classe
George Clooney é mais do que só charme num belíssimo filme sobre a ilusão das aparências
George Clooney podia não ter feito mais nada na sua vida que bastaria "Nas Nuvens" para perceber como, por trás da fachada de solteirão "bon-vivant" e sedutor, há um actor extraordinariamente inteligente a trabalhar. Porque o filme de Jason Reitman é precisamente sobre a ilusão das aparências, como fica explicado quando a personagem de Clooney, Ryan Bingham, dá por si a transportar nas suas viagens profissionais um recorte em cartão da irmã e do noivo para fotografar por onde for passando - eles não têm dinheiro para viajar e as fotografias tornam-se numa espécie de memória daquilo que se queria fazer mas nunca se fez.
Mas a única vida de cartão que há ali é a dele, Ryan Bingham, que foi a todos os sítios onde a irmã e o noivo gostariam de ir (e alguns onde eles não quereriam ter ido) e não trouxe nenhuma memória, nenhuma imagem, nenhuma prova que esteve lá ou que desfrutou da experiência. Bingham é executivo de uma empresa de "transição" (eufemismo para "despedimentos") que passa 320 dias em cada ano "na estrada", a viajar de empresa em empresa para licenciar empregados com um toque pessoal. Como o Robert de Niro do "Heat" de Michael Mann, não possui absolutamente nada que não possa caber na sua bagagem de cabina, e dá palestras motivacionais sobre a bagagem que transportamos. E não tem nada a que se agarrar quando surge uma nova executiva que tem uma ideia que vai revolucionar o mercado das empresas de "transição" e que o pode forçar a abdicar da sua vida literalmente "no ar": despedir à distância, via novas tecnologias.
"Nas Nuvens" é, já se percebeu, filme cheio de ironias contemporâneas: história de um especialista em despedimentos que se vê à beira de ser ele próprio despedido, rodada e estreada em plena crise económica (alguns dos empregados que Bingham/Clooney despede são, eles próprios, desempregados); história de um homem que prega abandonar a bagagem sem perceber que nunca se desfez da sua; história de um homem que se deixou seduzir pela própria imagem que projecta. Filme que se resume numa única frase que parece ser atirada assim meio ao acaso mas que, vai-se a ver, é muito mais central do que parece: "Sou como a minha mãe. Uso estereótipos porque é mais rápido."
"Nas Nuvens" é um filme sobre tudo o que se esconde por trás dos estereótipos e que é tudo aquilo que dá sentido e sabor e personalidade a uma vida que por vezes parece não ter rei nem roque, sobre um homem que dá por si prisioneiro do estereótipo que ele próprio criou. É, em grande parte, aí que o terceiro filme de Jason Reitman, depois de (e muito superior a) "Obrigado por Fumar" (2006) e "Juno" (2007), adaptado de um romance de Walter Kirn, se ganha: no perfeito ajuste entre actor e personagem, na inteligência com que Clooney modula infinitesimalmente confiança e vulnerabilidade na proporção exacta para tudo fazer sentido. É mais, mas muito mais, difícil do que parece, sobretudo porque não parece absolutamente nada difícil. E é mais uma ironia que "Nas Nuvens" vai inserindo subrepticiamente, ao transformar-se lentamente de alta comédia sofisticada clássica, à medida do poder de sedução de Clooney-vedeta, numa espécie de meditação amarga, quase desesperada, sobre o que significa ser "um profissional", ter "uma carreira" ou "uma ambição", revelando as insuspeitas reservas de talento de Clooney-actor. É uma fita sobre a ilusão das aparências, sobre a sedução de viver nas nuvens - e do choque que pode ser quando o avião aterra. É, já se percebeu, um grandíssimo filme, prova que ainda é possível a Hollywood fazer cinema de primeira classe na melhor linhagem clássica.

16 Abril - Arena + Taking Woodstock


Título original: Taking Woodstock

De: Ang Lee

Com: Henry Goodman, Edward Hibbert, Imelda Staunton
Género: Comédia, Musical
Classificação: M/16
Origem: EUA
Ano: 2009
Cores, 110 min


EUA, finais dos anos 60. Elliot Tiber (Jake Teichberg) vê-se em maus lençóis quando percebe que os seus pais estão à beira da falência e prestes a perderem o velho motel da família. Quando sabe que, numa cidade próxima, os habitantes fazem de tudo para frustrar os planos dos organizadores de um certo festival hippie, encontra aí a grande solução para o seu problema. Elliot decide arrendar para o evento o enorme espaço junto ao minúsculo motel. O que ele não poderia imaginar é que aquela decisão o iria tornar parte da história e que a sua pequena cidade se tornaria no centro do universo para as mais de 500 mil pessoas presentes. E depois, para o mundo...
Realizado por Ang Lee, o filme recria os factos reais que permitiram a realização do festival de Woodstock em 1969.

A abrir a sessão, "Arena", curta-metragem de João Salaviza centrada em Mauro, um rapaz que vive em prisão domiciliária, confinado a um espaço e ao tempo da sua pena. "Arena" ganhou a Palma de Ouro para a curta-metragem no Festival de Cannes de 2009.




João Salaviza explica "Arena" em seis passos (vídeo)

Luís Miguel Oliveira in PÚBLICO, 16 de Setembro de 2009
Sonho hippie
Um Woodstock de "sonho", muito plastificado (até a lama parece limpinha) e muito estereotipado.
Depois de um interlúdio em solo natal ("Lust, Caution", rodado em Taiwan) Ang Lee voltou aos EUA para o seu primeiro filme americano pós-"Brokeback Mountain". O título não engana, "Taking Woodstock" refere-se mesmo ao apogeu "peace & love" dos "sixties" e ao concerto de que agora se assinala o quadragésimo aniversário. O argumento baseia-se no livro autobiográfico de Elliot Tiber, que em 1969 era um jovem e empreendedor filho de estalajadeiros da zona de Woodstock, e foi um elemento importante na cadeia organizativa do festival, mesmo sem perceber bem onde estava metido. O Tiber do filme, pelo menos na interpretação de Demetri Martin, atravessa "Taking Woodstock" como uma silhueta, no fundo, e apesar da sua acção é uma testemunha daquela avalanche de "contracultura" que ele observa com estranheza. Há um lado "sirkiano" em Ang Lee, na maneira como olha para os americanos e para as suas "imitações da vida", e sem dúvida que esse lado está presente em "Taking Woodstock", reflectido num ambiente e num acontecimento muito específicos. Até por isso, não custa ver no protagonista e na sua estranheza (muito "clean": é relutantemente que, perto do fim, lá experimenta a sua primeira pastilha de LSD) uma projecção do cineasta, um asiático (que tinha 15 anos em 1969) a filmar a sua distância, não importa quão simpática, para com os "sixties" americanos. A coisa mais interessante está mesmo aí, no corpo estranho que é Tiber (assim como boa parte dos colaboradores locais) dentro daquela agitação toda, e na maneira "lateral" como o festival vai sendo seguido - como um rumor, um eco, música ouvida ao longe (Janis Joplin, por exemplo), que nunca se chega a materializar. E quando se vê o palco, sempre de longe, é como "coisa sonhada", pontinhos de luz colorida recortados no céu nocturno, feérie irreal. Não por acaso, a seguir vem a cena do LSD.
Lee precisava de ser mais "sirkiano" (e ter também um lado vindo, digamos, de Tati) para ir além disto. A procura da reconstituição mimética (a peruca de Michael Lang, o organizador-mor, é inacreditável) soa mais a falso do que ao realismo desejado, mas OK, isto é mais teatro do que outra coisa. Só que o artifício se esgota em si próprio, numa agremiação de "tipos" sem profundidade (o "travesti" de Liev Schreiber, o traumatizado veterano do Vietname a cargo de Emile Hirsch), bonecos da contracultura, "marionetas de época" - se em mais do que um sentido Woodstock foi a sua própria caricatura (basta ver o documentário de Michael Wadleigh), Ang Lee simplifica-a, fazendo um "cartoon", um desenho animado. Acrítico (é o "fenómeno") e edificante, propriamente beato, ou não fosse, no fim de contas, mera rima para o processo "libertador" do protagonista. Consciente do seu Woodstock de "sonho", muito plastificado (até a lama parece limpinha) e muito estereotipado (aquele casal "hippie" da cena do LSD...), Ang Lee põe no final Michael Lang a falar do seu projecto seguinte, um festival na California com os Rolling Stones, obviamente Altamont. Ou alter-ego, o alter-ego assassino de Woodstock, a expressão da densidade e das contradições dos "sixties" americanos que aqui Ang Lee prefere ignorar em favor de uma visão beatífica.

9 Abril - O Laço Branco


Título original: Das weisse Band

De: Michael Haneke

Com: Christian Friedel, Ernst Jacobi, Leonie Benesch
Género: Drama
Classificação: M/16
Origem: Alemanha/Áustria/França
Ano: 2009
Preto e branco, 144 min


A acção decorre durante os 15 meses que precedem a I Guerra Mundial. A história é contada por um narrador que, tendo presenciado alguns dos factos, tenta encontrar fundamentos e justificações para os anos posteriores da História do seu país.
Numa aldeia remota, no Norte da Alemanha, vários incidentes vão retirar os seus habitantes da calma monotonia a que se habituaram. Esses eventos, de grande violência, parecem ser rituais punitivos justificados pela fervorosa religião protestante. Até que o professor da aldeia (Christian Friedel) começa a tentar perceber o terrível segredo por detrás de tudo...
Filmado a preto e branco, é, segundo as próprias palavras de Michael Heneke, um filme sobre "a origem de todo tipo de terrorismo, seja ele de natureza política ou religiosa".
Foi o grande vencedor da Palma de Ouro na 62.ª edição do Festival de Cannes e é o candidato alemão para o Óscar de melhor filme estrangeiro.


Jorge Mourinha in PÚBLICO, 13 de Janeiro de 2010
Em nome dos filhos
A Palma de Ouro em Cannes 2009 é uma alegoria rigorosa, ascética, que fala da culpa com um virtuosismo formal quase ofensivo
Se há um cineasta europeu contemporâneo que temos tido a oportunidade (rara hoje em dia) de acompanhar continuamente, esse cineasta é o austríaco Michael Haneke - desde as "Brincadeiras Perigosas" originais (1997) que o revelaram internacionalmente, toda a sua obra chegou às nossas salas, o que é tanto mais peculiar quanto se trata de um dos autores menos unânimes e mais divisivos da actualidade. "O Laço Branco", Palma de Ouro em Cannes 2009, não é excepção à regra - Haneke continua a perseguir os mesmos temas de sempre com os mesmos métodos clínicos e austeros de sempre, embora aqui com uma diferença de base por comparação com os seus filmes anteriores. Trata-se de um filme de época, ambientado na Alemanha rural nos meses anteriores ao eclodir da I Guerra, e essa transposição para o passado parece permitir ao espectador um outro distanciamento. E tal como em "Nada a Esconder" (2004), há um semblante de género: o fio condutor da história é uma espécie de mistério policial, à volta de uma série de incidentes estranhos que perturbam uma pequena aldeia alemã.
Ou seja: e se "O Laço Branco", que começou vida como uma ideia para uma mini-série televisiva e acabou por ser feito para cinema, confirmasse definitivamente Haneke como um cineasta rigoroso e inteligente, cujos evidentes talentos de contador e organizador tivessem sido obscurecidos pelas estratégias narrativas provocadoras dos seus filmes? Sobretudo num filme onde a destilação precisa e segura, quase virtuosa, das suas "marcas registadas" dentro de um universo mais acessível impõe aqui um outro respeito, força uma outra atenção?
É, no entanto, não contar com a típica perversidade Hanekiana. Apesar das inclemências das duas "Brincadeiras Perigosas" (1997 e 2007) ou da "Pianista" (2001), nunca o seu cinema foi tão teatro da crueldade como em "O Laço Branco" - e a expressão "teatro" é perfeitamente adequada a um filme que denuncia o teatro social de uma comunidade onde os códigos feudais patriarcais ainda resistem e onde a liberdade pessoal de nada conta face à lei do pai ou de Deus (no caso, vai dar ao mesmo, porque aqui o pai é Deus, como explica a personagem do pastor).
Toda a gente neste filme representa um papel dentro de uma estrutura rígida onde até os pecados dos pais parecem estar predestinados - e isso leva-nos ao tema da culpa, que Haneke explora elegantemente através da sua elisão. Numa comunidade temente a Deus e às leis divinas, a culpa é impensável porque isso implicaria que ninguém é quem diz ser e que todos têm algo a esconder - e, contudo, a própria paz de Eichwald depende de ninguém ter nada a esconder. Tal como as video-cassetes de "Nada a Esconder" serviam como impulso revelador, os misteriosos incidentes de Eichwald trazem à superfície uma verdade que todos reprimem ou escondem mas que ninguém confessa ou assume.
É da culpa do nazismo que persegue a memória alemã e austríaca que Haneke fala? Provavelmente - mas isso é fixar uma interpretação que o realizador, que gosta de lançar enigmas mas não de desvendar as respostas, dificilmente aceitaria como única ou exclusiva. O que é certo é que é de pais e filhos que ele fala, do modo como os pecados ou as graças dos pais marcam os homens e mulheres que os seus filhos e filhas virão a ser. E pelo meio das inferências, elipses, sugestões e possibilidades que o filme lança, a única certeza é que o "ontem" de Haneke tem muito a ver com o "hoje" em que vivemos, é um espelho distorcido que o austríaco levanta com o seu ar rígido e professoral. À medida que os mistérios de Eichwald se vão adensando, que a crueldade dos adultos e das crianças se vai revelando, o austríaco sublinha por empatia as semelhanças desta comunidadezinha com o mundo em que vivemos, o modo como a história e o contexto tecem laços e teias de causalidade no que pode não passar de coincidência. Fá-lo num rigoroso preto e branco de um ascetismo quase calvinista, subvertendo continuamente os códigos e as regras do género que respeita à superfície.
"O Laço Branco" é um filme que, tal como as suas personagens, não é bem aquilo que parece ser. Mas isso, vindo de Michael Haneke, já não devia surpreender ninguém - tal como não surpreenderá ninguém que este seja, muito provavelmente, o seu melhor filme de sempre.


Dossier de imprensa

1 Abril (5ª-feira) - Estrela cintilante


Título original: Bright Star

De: Jane Campion

Com: Paul Schneider, Thomas Sangster, Abbie Cornish, Kerry Fox
Género: Drama
Classificação: M/12
Origem: GB
Ano: 2009
Cores, 120 min
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Em 1818, o jovem poeta inglês John Keats (Ben Whishaw) apaixona-se pela sua vizinha Fanny Brawne (Abbie Cornish) sem imaginar como isso irá mudar a sua vida. Apesar de terem muito pouco em comum, - ele um poeta romântico, ela uma estudante de moda pouco dada à literatura - a grave doença do irmão mais novo de John aproxima-os. Essa amizade, que rapidamente se transforma num amor sem limites, tendo a poesia como linguagem, acaba por tornar-se uma obsessão difícil de aceitar por todos os que os rodeiam. Mas, apesar de todas as contrariedades, só a doença e morte prematura de John Keats terá o poder de os separar.
Um filme biográfico, realizado por Jane Campinon, cujo título original se inspira em Bright Star: Love Letters and Poems of John Keats to Fanny Brawne, uma colectânea de cartas de amor e poemas do próprio escritor dedicados ao amor da sua vida.


Jorge Mourinha in PÚBLICO, 8 de Janeiro de 2010
A defesa do poeta
O novo filme de Jane Campion finta todas as expectativas do filme de época para contar uma arrebatada paixão moderna despoletada pelo poder da palavra
Um filme de sucesso pode fazer muito mal a um realizador que não lhe está habituado - no caso da neo-zelandesa Jane Campion, o problema não é tanto responsabilidade dela mas sim das expectativas que o triunfo improvável de "O Piano" (1993) colocaram nos ombros de uma cineasta que segue uma musa muito pessoal e ainda mais peculiar. De tal modo que os olhares mais mercantilistas olharam para "Retrato de uma Senhora" (1996), "Fumo Sagrado" (1999) e "Atracção Perigosa" (2003) como "suicídio comercial" a longo prazo - esquecendo o modo como cada um desses três filmes se inscrevia com naturalidade no percurso de uma realizadora mais atenta às correntes subterrâneas das suas personagens do que à recepção comercial de filmes que não foram pensados para serem "blockbusters".
Isto tudo para dizer que, como é habitual em Campion, "Estrela Cintilante", primeiro grande (que dizemos? Grandíssimo, extraordinário) filme que estreia em 2010, vai começar por ser visto como uma daquelas biografias históricas muito britânicas de irrepreensível reconstituição de época. Ou não contasse a história verídica (mas livremente romanceada por Campion a partir da pesquisa realizada por Andrew Motion, biógrafo do poeta) do romance entre John Keats, um dos grandes poetas românticos do princípio do século XIX, e Fanny Brawne, a sua jovem e arrebatada vizinha. Romântico é a palavra certa para descrever o amor de Keats e Fanny, noivado que a morte prematura do poeta impediu de consumar, mas se à superfície o filme cumpre muitas das figuras obrigatórias do género, um simples olhar por baixo do tapete descobre mais um daqueles "retratos de senhora" em que a realizadora é perita - uma mulher imperiosa e insegura ao mesmo tempo, à frente do seu tempo, moderna, determinada. A Fanny de Abbie Cornish é uma jovem que pode não ter verdadeiramente experiência de vida, mas entrevê nas palavras que Keats escreve a possibilidade de uma emoção de tal modo transcendente que raia o sagrado.
E é disso que "Estrela Cintilante" fala: do poder quase sagrado da palavra (escrita ou falada) para nos abrir portas, caminhos, janelas que nos mostram quem somos, quem podemos ser, quem queremos ser; da palavra poética como ponte espiritual entre as pessoas; do amor como experiência sensorial de uma transcendência inexplicável mas que, em condições ideias de temperatura e pressão, consegue ser traduzida em palavras. E, para melhor o traduzir para os seus espectadores, Campion filma tudo isto no âmbito de um peculiar triângulo amoroso (o terceiro vértice é Charles Brown, amigo, anfitrião e auto-nomeado protector de Keats com quem Fanny se pega desde o primeiro encontro), como se fosse um idílio pastoral literalmente de câmara que a saúde frágil de Keats confina a salas, salões, quartos. A natureza, em "Estrela Cintilante" é uma Natureza idealizada, que Keats regista na sua memória num dos espaçados planos de exteriores do filme e depois reconstitui na sua poesia ornamentada à qual a voz de Ben Whishaw dá uma vida extraordinária (à atenção da distribuidora: é inexplicável e lamentável que o poema lido por Whishaw ao longo do genérico final não esteja legendado).
Retrato assombroso de um romance moderno antes do seu tempo, "Estrela Cintilante" é um poema em cinema. E o primeiro grande filme de 2010

Abril 2010 - Cartaz


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