26 Fevereiro - Os Amores de Astrea e de Celadon


Título original: Les Amours d'Astrée et de Céladon

De: Eric Rohmer

Com: Andy Gillet, Stéphanie Crayencour, Cécile Cassel, Véronique Reymond
Género: Drama/Romance
Classificação: M/12
Origem: Espanha/França/Itália
Ano: 2008
Cores, 109 min
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Numa floresta maravilhosa, no tempo dos druidas, o pastor Céladon e a pastora Astrée vivem o seu amor puro. Um dia, enganada por um pretendente, Astrée manda Céladon embora, que, em desespero, se atira ao rio. Mas Céladon é salvo pelas ninfas. Fiel à sua palavra de não reaparecer aos olhos da sua amada, Céladon deve superar várias provas para quebrar a maldição. Louco de amor, é obrigado a disfarçar-se de mulher para conviver com a mulher que ama, mas saberá ele fazer-se reconhecer sem quebrar a sua promessa? "Os Amores de Astrea e de Celadon" é o último filme de Eric Rohmer.

Luís Miguel Oliveira in PÚBLICO, 10 de Julho de 2008
Conto moral de Verão com ninfas e pastores
Estamos tão habituados às estruturas seriais em que se organiza boa parte da obra de Eric Rohmer que quase involuntariamente nos pomos a fazer aproximações entre o que nos aparece "desirmanado". E assim sendo, não resistimos a notar que, desde que terminou, em finais dos anos 90, a série dos "Contos das Quatro Estações", o octogenário cineasta não voltou a pôr os olhos na época contemporânea em que se passa a maior parte dos seus filmes.
De então para cá, só filmes de "época" - "A Inglesa e o Duque" (2001), na Revolução francesa, "Agente Triplo" (2004), na Paris dos anos 30, e agora "Os Amores de Astrea e Celadon", que leva a questão da representação histórica a um pequeno paroxismo irrisório (?).
Trata-se de uma adaptação de uma história escrita em princípios do século XVII por Honoré d''Urfé, ambientada entre os gauleses que, no século V, viviam (dir-se-ia que "irredutivelmente", como na BD) à margem do Império Romano e da sua aculturação. Numa legenda introdutória, Rohmer explica que tentou retratar esses gauleses tal como eles eram imaginados no século XVII - o que cria um "abismo" interessante entre camadas de representação, mas mais ainda funciona como uma caução histórica que é invocada para ser imediatamente atirada fora. O que Rohmer quer é que "Astrea e Celadon" seja a exploração descomplexada de um universo poético-mitológico, e que não o chateiem com a "História".
Um mundo arquetípico composto por pastores, druidas e ninfas, no qual o cineasta não perde um segundo (fora a dita legenda) a esforçar-se para que o espectador "acredite". Com um investimento cenográfico mínimo (décors naturais, adereços quase nenhuns), o único traço "de época" visível é o guarda-roupa envergado pelos actores. Nesta perspectiva não estamos longe dos "filmes de toga" de Straub-Huillet, embora Rohmer procure outro tipo de investimento narrativo (não deixando por isso de preservar uma gota de artificialismo na relação entre actores e personagens - "Astrea e Celadon" também podia ser, e de certa maneira é, um "documentário" sobre uma "troupe" de actores amadores a representarem um texto teatral).
A questão que nos ocupa durante o primeiro quarto de hora é: como é que o universo de preocupações rohmerianas se vai inscrever neste universo despreocupado, feito de passeios bucólicos, festas e canções? Ora isso é a história de Astrea e Celadon. Desconfiada da infidelidade de Celadon (que ele nega terminantemente), Astrea proíbe-o de lhe voltar a aparecer pela frente. Desesperado, Celadon atira-se ao rio. Salvo por um grupo de ninfas que o transportam para o seu castelo, Celadon viverá daí em diante no dilema entre tentações e princípios: ser fiel ao amor por Astrea (que implica ignorar o apelo carnal das ninfas) e, mais difícil ainda, recuperá-lo respeitando a interdição decretada pela rapariga.
Como tantas personagens de tantos filmes de Rohmer, estas vivem obcecadas por questões de ética e moral comportamental, confrontando-as, na mesma intensidade auto-justificativa das personagens dos "Contos Morais" ou das "Comédias e Provérbios", com aquilo que as ameaça (em termos simples, o que se opõe a esse excesso de consciência é o desejo: "o inconsciente é o corpo", como, desconfiado da psicanálise, Rohmer uma vez explicou). As personagens discutem a própria "essência" do amor, e há no filme um cantorbufão- fauno que só lá está para isso, com a mesma profundidade com que o druida expõe as diferenças entre os deuses romanos e os deuses gauleses, numa pequena aula de teologia sobre a impossibilidade de haver mais do que um Deus. Mesmo neste território bucólico e mítico, tudo é razão e tudo é racionável, mas ao mesmo tempo tudo está sempre ameaçado pelo confronto com o mundo - mas que importa isso, se haverá sempre uma nova explicação, e mesmo Astrea chegará ao fim convencida de que foi por intervenção divina (e porque "as palavras fazem coisas") que Celadon, na formidável sequência final, se re-materializou à sua frente?
Como variação vagamente paródica do universo rohmeriano típico, "Os Amores de Astrea e Celadon" é um filme tocado pela graça. Essa graça terá uma explicação, mas para já, desfrutemos.


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